segunda-feira, 2 de maio de 2011

A DIALÉTICA DA ALMA I

"Você e eu somos um só, de modo que hoje, nossa vontade prevalecerá sobre nossas obrigações rotineiras, sabes a que me refiro, aquelas caminhadas que costumamos fazer, você e eu, pela cidade compacta, agora não mais, é verdade, pois que ela dilatou-se, assim como nós nos dilatamos e jä não cabemos mais dentro de nossos próprios vãos..." Que droga! A METALINGUAGEM outra vez, Você berra enfurecido riscando com violencia o seu caderninho de notas e, como se jä não bastasse, atira ao longe a canetinha bic que quica muitas vezes, saltando gritinhos de dor caindo desfalecida no chão do quarto, Você escorrega o corpo sobre a cadeira espaldada e fica assim um bom tempo, como um tronco sem alma descendo o rio, Seus olhos pequenos miram agora o radinho digital piscando as horas - quatro e pouco da tarde, O TEMPO, O TEMPO todo vagalumeando-lhe a angústia, "O tempo é metódico, cruel e pesa sobre meus ombros" um lampejo, você tem a memória fraca, por isso se apressa em anotar nas linhas da testa antes que tudo evapore e foi ELA que ensinou-lhe este velho truque: quando se quer guardar algo na lembrança, anota-se nas linhas da testa, un nome, uma data, um número, uma vingança ou até mesmo uma frase, Você então anota a tal frase em sua testa, "O tempo é cruel e metódico e pesa sobre meus ombros", ridículo, você reflete, mas não esqueça que você também é supersticioso como ELA o é, e depois, a frase é interessante, embora faça pouco sentido, ou nenhum sentido, NÃO, NÃO, NÃO, não faz sentido algum, Você apaga a frase das linhas da testa, "o tempo é cruel e metódico e pesa sobre meus ombros" seja ao menos autentico, rapaz, Você volta á sua amargura, o vapor da tarde entra pelas venezianas do quarto formando uma camda espessa e fantasmagórica, Você olha curioso para aquilo, é nesse instante que o telefone começa a tocar, uma-duas-três-quatro, na quinta você atende, "Mário? Mário Augusto?" "É ele, pois não?" "Sei qual é o teu problema, velho, é o teu nome, Mário, Mário Augusto, este nome não te conduzirá a lugar algum", Você ajeita-se na cadeira pra ouvir melhor, "Quem tá falando?" "Quem te quer bem, quer um conselho meu camarada? troca esse nome, um nome mais decente, qualé? e não sou só eu que afirmo isso, são os números, os números, Mário Augusto, os números dizem tudo e se não acreditas nos números, continuarás sendo um mero escritorzinho de província, é isso que tu queres pra tua vida? pra essa profissão que abraçastes de corpo e alma? escuta o que eu te digo!" "Escuta aqui você, VAI-TE-A-PUTA-QUE-TE-PARIU!!, e com aquela classe, você bate o telefone, depois de minutos ali parado, refletindo sobre aquilo tudo, você então reage indo ao quarto DELA, porque é de vida que você precisa e trancafiado em seu casulo jamais se exerce a vaidade da criação,
São quatro e pouco, são os olhos digitais do tempo que piscam pra você, Você caminha até lá, bate á porta DELA, "Entra!" ELA está lá, hipnotizada frente a TELEFOME com o controle remoto nas mãos, "Vou dar uma saidinha", você diZ, "Aonde vais?" A voz dela é metálica como de um personagem saído de uma ficção cyber punk,"Trocar esta camisa, ficou pequena", "É porque não prestas atenção, a cabeça nas nuvens, e depois?" "Vou á biblioteca pegar um livro pra ler", "E depois?" "Lê-lo em algum lugar, no porto, talvez", "E depois?" "Vou ao Gebes, hoje é sexta e tem jazz de graça", "E depois?" "E depois?",
r e t i c ê n c i a s
Você repara que o vapor denso e fantasmagórico também entra pelas venezianas do quarto DELA, tudo muito estranho, "Vou a um bar espairecer um pouco", O quarto fica em silencio, ELA aponta com o controle sem tirar os olhos da TELEFOME e diz, "Ali na gaveta tem os trocados da feira, vê se não chega tarde, olha tua dor de estômago, Já arrumou emprego?"