segunda-feira, 18 de abril de 2011

JESUÍNO MARABÁ - FINAL

"Conceição teve um novo acesso de tosse e dessa vez não conseguiu me dizer mais nada..."
"E onde ela está agora?" Perguntei a Algemiro. "Como ela não tivesse para aonde ir, pois que o fogaréu se espalhou, engolindo o barraco todo, ficando ela sen teto portanto, então eu a levei para minha casa. Nunca mais voltou a falar, Morreu poucos dias depois. Voltei então para Rio do Sol. Na viagem de volta, conheci Leonor que estava vindo para enterrar o pai. Criou-se entre nós um forte laço que dura até hoje. E esta é a história da minha vida vida, seu Paulo. Não é uma história bonita de se ouvir..."
Ainda chovia. Mais bem pouco. Olhei para a garrafa de cachaça vazia sobre o chão de barro batido. Contemplei por um instante a chuva fina que continuava a cair e então eu disse:
"É, amigo, mas a vida continua, não é mesmo?" Foi tudo o que eu covardemente pude dizer aquele homem. Leonorm veio juntar-se a nós. Nela, Algemiro finalmente encontrara amor, compreensão, afeto, calor humano, enfim, a paz verdadeira cuja existencia os anos de sofrimento o fizeram duvidar que existissem. Ao menois aquele desabafo servira para Algemiro exorcizar todos os fantasmas do seu passado.
Pegou Leonor cintura e puseram-se a dançar no terreiro. Foi a primeira e última vez que o vi assim: feliz, sorrindo e até dançando, antes de eu vir morar definitivamente em Manaus e nunca mais saber notícias suas.

(do livro Doze Contos Amazônicos, publicado em 1999)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

JESUÍNO MARABÁ - PARTE VI

QUERIA MINHA LIBERDADE E NÃO TINHA OUTRO JEITO A NÃO SER MATAR JESUÍNO

Jesuíno me obrigou a acompanhar ele. Me trouxe para cá e aqui me fez de puta. Se tornou meu cafetão. Passei a sustentar ele e quando eu chegava em casa sem dinheiro, ele me espancava. O desgraçado batia em mim por qualquer motivo. Fugi dele muitas vezes, mas sem muita sorte. Aonde quer que eu me escondesse, ele me achava e aí todo aquele inferno se repetia. Não aguentava mais. Estava cansada, doente e cada vez mais ficava difícil conseguir um freguês. Por tudo isso tomei uma decisão: naquela noite o dinheiro que arranjasse seria pra comprar uma passagem e sumir dali pra bem longe dele. Longe o bastante para que ele jamais pudesse me encontrar. Dei sorte logo ao chegar no Natureza. Um homem velho e gordo me chamou para a mesa dele. Bebemos, conversamos, nos divertimos um bocado. Lá pelas tantas fomos para o quarto. O sujeito mal conseguia se manter em pé de tão bêbado que estava. Mas tinha que aturar ele, pois que em sua carteira estava o dinheiro que compraria minha liberdade. Aí então entramos no quarto, e logo ele se atirou de braços na cama que tombou com seu peso. Peguei ele pelo meio e sacudi ele várias vezes. Nada. O infeliz tinha mesmo apagado de vez. De pronto, retirei da carteira dele todo o seu dinheiro. Fiquei espantada comigo mesma, pois que não senti nem um pingo de remorso ou arrependimento em fazer aquilo. É,meu irmão, a vida acaba ensinando a gente a não ter respeito ou escrúpulo por ninguém. Naquele momento eu só pensava em mim. Estava preocupada apenas em fugir daquele inferno. Coloquei todo o dinheiro na minha bolsa e saí fora dali. Fui direto pra casa. Jesuíno ainda não havia chegado. Como de costume ele só deveria voltar da farra pela manhã. Enquanto arrumava numa valise minhas roupas, sentei na cama e comecei a sonhar acordada. Já até me via em outros lugares, andando livre, sorrindo; vivendo outra vida. Uma vida mais decente. Sem medo, sem remorsos, sem ódio, sem culpas. De repente, fortes batidas na porta apagaram da minha mente todo aquele sonho e me trouxeram de volta pra realidade. E a realidade era brutal, desumana e tinha um nome: Jesuíno Marabá. É, só podia ser ele, e pelas pancadas na porta, estava muito bêbado. Pé ante pé caminhei até á porta e olhei pelo buraco da fechadura. Do outro lado, o desalmado. Antes que eu pudesse esconder o dinheiro e pensar em alguma coisa, ele arrebentou a porta com um ponta pé e entrou casa á dentro. Tentei ainda gritar por socorro, mas meu grito foi calado com um murro certeiro que me atirou no chão. O teto começou a girar e minha visão foi escurecendo e aí então eu desmaiei. Apaguei mesmo. Só depois de muito tempo foi que retornei. Meu corpo todo dolorido. Olhei minha bolsa aberta no chão. Todo o dinheiro havia sumido. Fui até o espelho e só então pude ver meu rosto desfigurado. Gotas de sangue ainda escorriam por uma brecha que se abriu na minha testa e o sangue pingava na pia. O meu olho roxo inteiramente fechado. Ahh, amaldiçoei o dia em que o conheci. Amaldiçoei também todos os dias em que fui obrigada a viver com ele. Queria ver ele morto. Precisava colocar um ponto final naquela situação.Queria minha liberdade e não tinha outro jeito a não ser matar Jesuíno.
Olhei novamente no espelho o meu rosto desfigurado e comecei a imaginar um plano. Não aguentava mais. Tudo se repetiria. Ele tinha levado todo o meu dinheiro e voltaria mais tarde totalmente bêbado e me espancaria até a morte. Não me sujeitaria mais aquilo lá, não. Quando a noite chegou, não
conseguia dormir. O ferimento voltou a sangrar. Estava diante do espelho ajeitando o curativo quando ele retornou. Não disse nada. Foi direto para o quarto e se deitou calado. Como de costume, estava de porre. Esperei algum tempo até se firmar no sono e aí então fui até a cozinha, apanhei um facão bem amolado e voltei para o quarto onde ele dormia. Sim, o desgraçado dormia tranquilo como se nada tivesse acontecido. Sentei na beira da cama e contemplei seu corpo nu da cintura pra cima. Me certifiquei se ele estava mesmo dormindo. Então juntei toda minha força que ainda me restava e enterrei fundo o facão em seu peito. Jesuíno pro meu espanto, abriu os olhos e numa reação repetina, o maldito me agarrou pelo pescoço e começou a me estrangular. Seu corpo pesado desabou sobre o meu e fomos para os dois no chão do quarto. Seus olhos arregalados enquanto me estrangulava. Pensei que ia morrer. Mas logo, toda aquela força descomunal foi esmorecendo. Suas garras se desprenderam do meu pescoço e caíram pesadamente no chão como um fardo de farinha. Me arrastei pra bem longe dele e me pus de pé. Chutei várias vezes seu corpo, e como não se mexia, constatei que estivesse morto. Não me dando por satisfeita, peguei um garrafão de álcool e despejei por sobre o corpo do condenado e ateei fogo. A alma daquele demônio ainda vai arder por muito tempo nas profundezas do inferno!"

zona portuária de Manaus

quarta-feira, 13 de abril de 2011

PARTE V - JESUÍNO AGORA ARDE NAS PROFUNDEZAS DO INFERNO

Caminhamos até um bar a céu aberto e sentamos numa mesa dos fundos pra conversar um pouco. Olhamos um para o outro e assim ficamos por um bom tempo em eilencio. Um silencio triste. Engelhado pelo tempo. Muitos anos separavam a gente da tragédia que acabou com as nossas vidas. Ela havia envelhecido brutalmente, e daquela moça faceira e cheia de vida, quase nada restava. Conceição ainda tentou esconder que estava doente, mas nem precisava, pois sua aparência não me deixava dúvidas.
"E Jesuíno? que fim levou o desgraçado?" Perguntei a Conceição mesmo sabendo que não era uma hora boa para aquela conversa. Ela acendeu um cigarro, deu uma tragada e começou a tossir. Tossiu bastante. Trinta e duas vezes, eu contei. Foi então que pude notar que seus olhos que antes eram castanhos-claros e cheios de luz, agora nada mais eram que duas poças transbordando em sangue a denunciar a doença que tomava conta dela por inteira.
"Jesuíno agora arde nas profundezas do inferno, de onde nunca deveria ter saído." Respondeu minha irmã, dando uma cusparada vermelha. Nos abraçamos e começamos a chorar. Ficamos abraçados assim até que ela foi acometida de novo de um ataque de tosse e se afastou como uma sombra triste. Quando voltou, me disse:
"Aquele maldito está morto, mas me levou com ele." Comentou entre lágrimas. Esperei que se acalmasse. Acendi um cigarro e ofereci a ela. Sua mãos tremidas, mal conseguiam segurar o cigarro. NÃO! Aquela, seu Paulo, não era minha irmã. Defitivamente a alegre Conceição de minhas lembranças não podia ter se transformado naquele trapo, naquela... ahh, como me odiei por não ter encontrado ela antes. Me odiei ainda por não ter eu mesmo matado aquele desgraçado..."
Algemiro bateu várias vezes com as mãos na cabeça como que transtornado pelo ódio armazenado durante anos dentro de seu peito. Depois, fitou-me como se fosse descarregar sobre mim, toda sua ira reprimida. Em seguida, olhou para o alto, levou as mãos postas até á boca, respirou fundo e falou num sussurro:
"Me desculpe, seu Paulo!"
"Tudo bem, cabra. Desabafa! Vai te sentir melhor." E ele então continuou:
"Conceição com muito esforço conseguiu me contar toda sua vida desde aquela noite até o nosso encontro..."

sábado, 9 de abril de 2011

JESUÍNO MARABÁ - PARTE IV

UM CACHORRO VIVE MELHOR QUE UM HOMEM NAQUELA CIDADE

"Sem dinheiro e sem conhecer ninguém, passei os diabos em Manaus. Fome, humilhação e toda sorte de discriminação que alguém pode sofrer, eu sofri. Mas a esperança de encontrar Conceição ainda com vida, junto ao desejo de vingança era bo alimento que me dava alento nos dias mais difíceis. E foram tantos que quase cheguei a desistir. Mas dizem, veja o senhor, que a sorte não escolhe quem ela procura, e até um desgraçado como eu, teve o seu dia. Consegui um trabalho como estivador no cais do porto, o que me garantia moradia e alimentação. Mas o desgosto me fez adquirir o vício da bebida. A princípio, bebia com o intuito de esquecer o horror que tinha vivido naquela noite, e também pra não esquecer da minha vingança. Depois se tornou um vício mesmo. A chegada da noite era o que mais me dava medo. Pois com ela vinham os pesadelos e os delírios movidos quase sempre pelo excesso da bebida. A imagem de Jesuíno não me deixava em paz. Sua sombra estava em todos os lugares. Nos bares, nas esquinas, nos puteiros da cidade... Onde quer que eu fosse, tinha a impressão que a qualquer momento ficaríamos cara a cara, aí era matar ou morrer.
Passaram os dias, meses, anos e nada. Vencido pelo desespero e pela miséria da alma, estava decidido voltar para Rio do Sol. Aquilo ali não era vida que um ser humano merecesse. Agora eu só buscava um emprego decente e um pouco de respeito. Não encontrei ali. Um cachorro, seu Paulo, vive melhor que um homem naquela cidade. A cada dia eu morria um pouco por dentro, e junto, a esperança de encontrar minha irmã. Lutava em aceitar, mas a verdade é que havia desistido de tudo. Só pensava em voltar e recomeçar a minha vida. Mas o destino, olhe só, sempre reservando pra gente suas surpresas. Conceiçào estava viva. Fui encontrar ela certa noite caminhando a esmo como se fosse um fantasma, nos arredores do mercado municipal. Havia finalmente encontrado aquela que eu julgava morta. Na verdade, Conceição estava inteiramente morta por dentro. Nós dois estávamos mortos. Só nossas sombras teimosas vagavam sem rumo. Nossas almas, seu Paulo, se recusavam a deixar nossos corpos...

sexta-feira, 8 de abril de 2011

JESUÍNO MARABÁ - PARTE III

VIM CUMPRIR MINHA PROMESSA E BUSCAR O QUE ME PERTENCE

"Era noite. O vento soprava forte. Tão forte, seu Paulo, que avelha mangueira do quintal se vergava por sobre a nossa casa. Nas paredes da cozinha, nossas sombras dançavam tremidas no compasso da chama da poronga que se mantinha viva com muito sacrifício. Aquele temporal era anúncio de algo ruim. Eu estava na mesa em companhia dos meus pais. Soldado, junto dos meus pés, soltava grunhidos estranhos. Conceição já tinha se recolhido pra dormir. Lá fora, relâmpagos riscavam todo o céu. De repente, como que surgido do nada, bem a nossa frente, junto da porta, Jesuíno segurava em uma das mãos um enorme terçado. Até hoje quando fecho meus olhos, só consigo enxergar ele naquela posição ameaçadora. Me lembro que um raio desabou alumiando todo o interior da casa. Foi quando pude ver o brilho de ódio saindo daqueles olhos negros que cuspiam fogo: "Vim cumprir minha promessa e buscar o que me pertence." Esbravejou Jesuíno investindo em nossa direção. Foi tudo muito rápido, seu Paulo. O primeiro que provou da sua fúria foi o meu pai que teve a cabeça decepada com um único golpe de terçado. Ainda escapou de um grito de clemência, jesus!! que se perdeu no ar. Depois ele se virou na direção de minha mãe que estava no outro extremo da mesa e decepou-lheos braços - um de cada vez - e em seguida, enterrou fundo o terçado em seu peito com tamanha violência que a arma lhe varou as costas. Apavorado, deslizei por debaixo da mesa sobre o sangue dos meus pais e fui sair á porta ganhando o rumo de fora. Fugia desesperado da morte que me era certa. Atrás de mim vinha Soldado. Jesuíno vinha logo atrás gritando feito louco, como se fosse o próprio demônio:
"VOU TE SANGRAR E BEBER O TEU SANGUE!" Gritava sem parar o demônio. Sem que eu percebesse, fui me embrenhando mata á dentro. O tinhoso cada vez mais perto. Até hoje não consigo acreditar como pude subir naquela árvore gigantesca tão depressa. Talvez tenha sido mesmo o medo junto a vontade imensa de viver que me deram tanta destreza. Já Soldado, não teve a mesma sorte, pois que uma terçadada certeira o alcançou partindo o animal no meio. Uma parte dele ainda grunhia como um condenado até morrer. O senhor me acredite, por favor. Pois bem, prendi a respiração e o grito que queria fugir da mi nha garganta. Da copa da árvore, meus olhos esbugalhados de medo e pavor, acompanhavam o desalmadoa me procurar em derredor, lá embaixo. Não sei se o senhor vai mesmo acreditar em mim, seu Paulo, seria até pretensão minha que acreditasse, mas fiquei ali na copa daquela árvore durante cinco longos dias."
"Acredito! Claro que acredito. O medo nos prega muitas peças.' Adiantei-me.
Nova pausa. Mais talagada de cachaça.
"Quando me voltou a coragem e com ela a certeza de que o perigo não mais existia, foi que desci daquela árvore. Andei vários dias desnorteado pelo mato sem entender o motivo de tamanha crueldade. Tudo havia acontecido tão depressa que só naquele instante me dava conta de todo aquele pesadelo que passei. Via meus pais mortos mergulhados no próprio sangue. Pensava em minha irmã. Não sabia se estava viva ou morta. Todas essas lembranças me formigavam a cabeça. Só pensava em morrer; me atirar do primeiro barranco que encontrasse no caminho. E no meio de toda aquela tortura, fiz um juramento: só descansaria no dia em que ajustasse contas com Jesuíno e vingasse a minha família.
Dias depois, soube por informações, que Jesuíno se tacara para Manaus levando com ele minha irmã. Nem pestanejei. Pedi passagem num barco e parti naquele rumo...

quinta-feira, 7 de abril de 2011

JESUÍNO MARABÁ - PARTE II

O INFELIZ AINDA CAMBALEOU ALGUNS METROS SEGURANDO AS PRÓPRIAS TRIPAS

"A gente era uma família feliz, seu Paulo. Eu, meus pais e minha irmã. Ah, tínhamos também um cachorro chamado Soldado, o nosso cão sentinela. Eu tinha quinze anos. Conceição, minha irmã, contava dezesseis. Minha mãe era uma pessoa meiga e muito religiosa. Meu pai, homem trabalhador. Aqui todos o conheciam. Apesar de seu jeito rude, era visto com bons olhos e muito respeito. Nunca que me lembre, deixou que faltasse pra gente alguma coisa. Não tínhamos o que reclamar da vida. Algumas vezes o velho nos dava um corretivo pra colocar as coisas nos eixos. Mas era só. No fundo era um bom homem. Toda desgraça começou a se desenhar quando Conceiçào se desprendeu das rédeas dos meus pais. Adolescente, o senhor já viu. Bonita e viçosa como uma flor, tornou-se a rainha de um "rasga-velha". O senhor sabe, né? Um arrasta pé. O clube funcionava na vila que ficava próximo ao nosso sítio. Foi no dito brega que minha irmã cruzou com o desgraçado. Chamava-se Jesuíno Marabá. Um negro de porte gigantesco, forte como um touro, uma cara amarrada e feia, vindo sabe-se lá de onde. Sangue ruim, diziam alguns. Comentava-se á boca pequena que o cabra trazia na bagagem uma infinidade de mortes. Pra mais de cinquenta, é. É o que se comentava. Contavam muitas histórias a seu respeito. Ai daquele que se metesse a esperto ou valente com ele. Certa vez um sujeito metido a valente o peitou nesse maldito "rasga velha" e Jesuíno fez saltar os olhos do cabra com sua peixeira afiada. Um homem que jurava ter presenciado o fato, contou que ainda viu a vítima se contorcendo de dor no assoalho do bar. Contou também que o irmão do morto, ao tentar tomar suas dores, deixou o lugar com as vísceras pra fora e soltando golfadas de sangue pela boca.
"o infeliz ainda cambaleou alguns metros segurando as próprias tripas e caiu mortinho acolá, no chão, ao lado do irmão." Falou essa testemunha.
"Mas Jesuíno era tudo isso mesmo?" Duvidei.
"Era, seu Paulo. Os homens se cagavam todo. As mulheres o bajulavam. Nos salões de festas, era considerado por todas, um rei. Um pé de valsa de primeira, o desgraçado, e a mulherada o disputava afoitamente. Mas foi por Conceição que o tinhoso foi arreganhar seus dentes e,numa daquelas noitadas, presa em seus braços - que mais pareciam toras de maçaranduba, Conceição dançou a noite inteira. O malandro além de muito esperto, possuía uma grande lábia e minha irmã caiu direitinho na sua conversa. Não tardou pra ela se enrabichar pelo diango. Os comentários se estenderam e chegaram aos ouvidos de meu pai. O velho baixou a cinta em Conceição e a pôs de castigo trancada em casa. Era o pago por sua desobediência. Mas Conceição, enfeitiçada que estava pelo disgranhento, fugia e voltava a se encontrar com ele ás escondidas. Só depois de muitas surras, conselhos, rezas, benzeduras e velas gastas em promessas feitas por minha mãe, a vergonha foi devolvida á Conceição e ela prometeu não ver mais ele. Nunca mais. O cara ficou possesso: "Tu vais ficar comigo nem que eu tenha de dar cabo de toda tua família. Mato um por um e fico contigo." Ameaçou Jesuíno quando sentiu que ele ía mesmo ficar sem ela. No entanto, Conceição estava decidida e aquela ameaça foi a gota d'água. Mas Jesuíno não estava de brincadeira, não. Logo ele que nunca se deixava vencer ou se intimidar por nada, jurou vingança. E foi naquela noite, seu Paulo, que tudo aconteceu..."

Nova pausa. Algemiro tomou outro trago violento da bebida e me olhou.
"Então, homem?" Insisti. Ele passou as mãos pelo rosto, respirou fundo...

quarta-feira, 6 de abril de 2011

JESUÍNO MARABÁ

PARTE I - TENHO UM PASSADO MUITO TRISTE, SEU PAULO.

Ouça bem leitor, a história que vou lhes contar.
Já faz algum tempo que conheci Algemiro e Leonor. Os dois ainda moram em um humilde casebre ás margens de um lugar chamado Rio do Sol, nos confins do Amazonas. Lugar este - costumava dizer - esquecido pelos homens, mas lembrado por Deus. Por Deus? Indaguei-me certo dia após ter ouvido aquela história.
Pois bem. A natureza havia sido generosa em Rio do Sol. A terra muito fértil. O casal sobrevivia da venda da farinha que eles mesmos produziam e abasteciam o meu comércio que ficava na vila, um dia de viagem dali, subindo o rio. Eu, por muito tempo, fui um comerciante próspero desde que finquei meus pés naquelas plagas. Ali montei meu comércio de gêneros alimentícios onde vendia a farinha de boa qualidade que o casal me fornecia. Religiosamente, uma vez por mês, pegava o meu barco e descia o rio para renovar o estoque. Esta rotina fez florescer entre mim e o casal, uma grande amizade. Algemiro, quando o conheci, carregava em seu interior uma tristeza visível. Além de seu jeito calado, introspectivo, podia-se ler nas linhas grossas daquele semblante duro e sofrido, a história de um passado trágico. Houve ocasiões em que o encontrava chorando compulsivamente. Sofrer de solidão como alguns ribeirinhos que eu conhecia tão bem, certamente que não, pois que Leonor, sempre ao seu lado, mostrava-se uma boa companheira e muita atenciosa. De necessidades, era óbvio que não. O dinheiro apurado com a venda da farinha e outros utensílios que eles também vendiam para fora, não lhes permitiam passar privações. A pesca era farta e tinha caça em abundância. Então o que podia atormentar tanto aquele caboco que sempre na defensiva, raramente deixava escapar um sorriso? Em todos aqueles anos de convivência, foram poucas as ocasiões em que ele se mostrava um sujeito alegre e conversador. Chegava até cantarolar algumas modinhas, mas era só. Logo recolhia-se a sua mudez e melancolia habituais. Certo dia quando quando proseávamos bebendo uma cachacinha, Algemiro desabafou:
"Tenho um passado muito triste, seu Paulo."
Fui pego de surpresa. Ajeitei-me num tronco de árvore que de improviso nos servia de banco. A curiosidade era tanta. Há muito eu queria saber o que se passava no âmago daquele homem de feridas profundas.
"Conta, homem! Vamos, coragem!
"Está bem, seu Paulo. Vou contar! Concordou Algemiro abrindo em seguida outra "esquenta peito" que eu havia trazido para bebermos Juntos. Leonor se fazia presente naquele início de tarde. Com um remo, mexia lentamente a farinha que torrava no interior do forno. Começava a chover. Uma chuva fina que teimosamente castigava o telhado de zinco daquele barracão. E a chuva - eu já havia reparado nisso - parecia catapultá-lo a um cenário de grande desgraça no passado.
"Já se vão um bocado de anos, seu Paulo, mas é como se tivesse acontecido um dia desses. Até hoje acordo no meio da noite choirando feito criança, pois ainda posso ver bem na minha frente, o desgraçado jurando me matar..."
Fez uma pausa longa. Tomou uma talagada de cachaça e só então prosseguiu...

sábado, 2 de abril de 2011

criaturas do centro da terra

Soraia. depois que Marcolino quebrou aqueles côcos ele se foi e não voltou nunca mais. acho até que morreu. a vida é uma gaivota.
Lurdete. o que roubava?
Soraia. era. ficava que nem gato com pescoço espichado na estação da Matriz e quando o ônibus parava ele pulava e pegava. que nem gato mesmo. que nem aquele lá, espia! ui! me prometeu um cordão e que eu ia morar com ele. morar não fui não, mas um cordão puríssimo ele me trouxe ao meio dia de um domingo desses e ainda quebrou uns côcos. depois disse que ia comprar cigarros e não voltou mais. os côcos, ele batia cinco vezes no ferro até eles se partirem, e no calorzão de meio dia matei minha sede e minha fome. ele tava doidão nesse dia quebrando côcos ao meio dia, só que era só pra mim. mas a vida é ilusão.
Lurdete. e o que tu fez?
Soraia. Vi ele indo embora e me escorei no ferro. se a gente fica parada olhando pro sol e pensando, a gente não batalha e morre de fome. esse lado aqui do peito empedrou, e eu tenho um curumin me esperando lá em casa.
os olhos do homem do bombom em cada biquinho do peitinho. que nem pipira, o nojento.
Soraia. espia, Lurdete! só que esse lado aqui empedrou e agora o leite sai amargo que nem a vida. as vezes somos arrastadas pra boca da morte que nem sentimos. é só o vento batendo.
Lurdete. já não penso tanto na morte, mas no EXU que lambe as nossas feridas vivas.
Soraia. XÔ, CHÔ, EXU, XÔ! se a gente dá muito mole, hoje ou amanhã ele vai querer o nosso encontro com satanás. foi o pastor que disse.
Lurdete. Margozinha botou aerosol na comida do marido. o que batia nela, sabia?
Soraia. não há esperança na vida pra uma desgraçada dessas. o homem era o esteio. sozinha não se cria. dou o meu cu. Francinaldo, por exemplo, me mói o corpo quase todo santo dia, mas estou ficando velha e não burra. sozinha como é que vou dá conta da vida?
Lurdete. e Marcolino, menina? o dos côcos?
Soraia. tu jura, maninha? ah, esse se foi pra nunca mais...

sexta-feira, 1 de abril de 2011

KARLA

Contava trinta e sete quando finalmente decidiu-se pela mudança. Não podia mais suportar a mulher clandestina gritando dentro dele. Só não o fez logo por respeito á mãe: "Deixa eu morrer primeiro, Carlos, que é pra não ver tamanha vergonha." Disse ela certa vez, quando Carlos tinha ainda vinte e poucos. Esperou pacientemente a mãe envelhecer e depois morrer para que enfim ele assumisse a sua nova condição.
Cuidou só ele de todos os rituais póstumos: enterrou a mãe, respeitou o tempo de luto, vendeu a casinha no bairro João Paulo - seu único bem - cortou todos os laços parentais, tomou os hormônios necessários e foi pro mundo com uma nova identidade na alma. Embora soubesse que era um caminho sem volta, estava decidido.
Carlos virou Karla e caiu no mundo, como já disse. Naquela noite quando a viram chegar no bar "Natureza", transformada, fizeram uma grande festa para celebrar. Algumas, é claro, torceram o nariz. Tava pouco se lixando. Pagou cervejas pra todas. Karla estava tão feliz que uma luz muito intensa saía de dentro de seus olhos castanhos. Os cabelos encaracoladinhos desciam alegres e envaidecidos por sobre os ombros de ossatura estreita.
Na sua noite de estréia, só uns poucos se engraçaram dela: "No começo é assim mesmo, não te esquece que são as rachas que ainda mandam." Tranquilizou uma delas. Passou então a frequentar com mais afinco a Tamandaré e imediações, fazaendo dali seu ponto de batalha. Havia porém, alguma coisa de muito errado com Karla. Na verdade, sempre houve algo de muito errado com ela, desde os tempos de michê, no corpo de Carlos. É que se apegava muito fácil aos clientes. Uma delas, a de nariz de tucano, advertiu: "Puta não se apaixona, menina." Mas o que ela queria era se apaixonar, e depois, ela não era puta não, estava ali só passando uma chuva.
O tempo foi passando e Karla foi cansando da rotina daquele lugar e daquelas pessoas. Botou na cabeça que tinha que ir pra Belém e de lá, quem sabe, até São Paulo. Longe, as oportunidades eram bem maiores. Ali não dava mais para ela, não. O lugar tornara-se nojento. A cidade também. Certa noite as amigas não suportando mais o seu mau humor e depressão, a deixaram largada e bêbada no Bar Mistura. Eram quatro e pouco da manhã. Não havia feito programa algum e precisava de dinheiro. Olhou em sua volta e filosofou sem querer: "A angústia da mariposa não é diferente da de um louva-deus." Já pensava em fazer uma besteira, quando foi abordada por um marinheiro filipino, desses que vez ou outra aportam no cais de Manaus a serviço do Lloyd Queen. Ele sentou-se ao seu lado e pagou-lhe uma cerveja. Não trocaram falas. As luzes giravam no teto do Mistura. Uma canção das antigas tocava. Depois daquele dia, nunca mais se teve notícias de Karla. Há quem se arrisque a dizer que ela partiu com o marinheiro filipino para um outro continente. Eu prefiro assim, e você?

(para o travesti Mayara, da antiga boate Millennium, brutalmente assassinada no dia 01 de maio de 2006)

a deusa: pablo picasso