sábado, 26 de novembro de 2011

O ENTERRO DO ANÃO (CONTINUAÇÃO)

II- FRIDUS CARNE

Dobrei a esquina da Tamandaré e dei com o ‘Bar do Mergulhador’ ainda aberto, piscando seus letreiros de neon sujo. Senti uma angústia terrível. Uma vontade imensa de beber sem ter dinheiro. No entanto, aquele lugar me dava sorte. Sempre que ia ali, conseguia descolar alguma bebida. Acho que era o meu contato com o mergulhador, sei lá. A história é o seguinte: algum tempo atrás - bebendo um conhaque negro sozinho neste mesmo bar - eu contemplei a visão maravilhosa de um escafandrista do início do século XX. Ele bebia sozinho sentado nos fundos, próximo à janela de telas. Um ventilador enorme e pré-histórico girava sobre sua cabeça. O estranho é que só eu conseguia vê-lo ali sozinho, sentado àquela mesa, com sua roupa de escafandrista do início do século XX. Uma visão espetacular a daquele mergulhador. Todas as noites quando eu ia àquele bar, eu dava com ele sentado nos fundos, drenando sua cerveja através de um tubo de cilindro acoplado em seu capacete de bronze de uns dezesseis quilos. Nessa época, contei para alguns amigos sobre esta visão glorificada e todos foram unânimes em querer compartilhar esta visão comigo. Contudo, para ver o mergulhador, era preciso ingerir algumas doses do conhaque negro sem mistura, (tipo, nada de limão, puro mesmo!) e esperar até ele aparecer. O problema foi que nenhum deles viu coisa alguma. Passavam mal e vomitavam tudo. Certa manhã, acordei com um telefonema da mãe de um deles: “Você envenenou meu filho, seu filho da puta!” Certa vez levei o Carcamano até lá com a esperança que ele visse alguma coisa, mas o que ele conseguiu ver foi apenas sua cabeça desprendida do corpo, agonizando do outro lado da rua sendo lambida por um cachorro pirento. Só mais tarde é que vim descobrir que eu era o único a ser agraciado com aquela espécie de epifania. Nunca soube até hoje o significado daquela aparição. A percepção é uma verdade que mente. Ah, risquem isso!! tirei da Discovery Chanel. Pois bem. Parei onde? Sim. Subindo as escadas daquele puteiro. Uns caras mal encarados esbarraram em mim na subida. Segui subindo. Enquanto subia as escadas, eu entoava um mantra:
Mesmo sem grana vou beber! / Mesmo sem grana vou beber!
E eu precisava mesmo de uma dose de qualquer coisa pra esquecer aquela noite. Eu estava fodido. Não, você não sabe o que é um cara fodido, sem grana e querendo beber uma hora daquelas. Você tá aí no bembão, sentado, tomando tranquilamente sua cerveja, com grana no bolso, com seu empreguinho e com sua mulherzinha esperando em casa, e você não sabe o que é um cara fodido. Não, você não sabe. Mas não vou culpá-lo por isso. Sou eu que arrisco o meu rabo pra te dá prazer enquanto você fica aí sentado lendo essas páginas, rindo da minha cara. De toda essa situação. Você não tem culpa de nada, o ferrado aqui sou eu. Mas esta é a minha função.
Entrei. Tocava umas músicas sem esperança. Uma puta gorda e com bolsas nos olhos girava cansada em volta do ferro. Me escorei no balcão e fiquei olhando todos aqueles caras ali sentados de caralho mole olhando a gorda dançar. Alguém do outro lado apagou em um quadro o preço antigo da cerveja e colocou outro. Tudo numa lentidão que me dava nos nervos. A gorda dançava no palco. Conhecia bem o cara que estava atrás do balcão servindo as bebidas, mas ele certamente não lembraria mais de mim. A gorda dançava no palco. Pensei numa maneira educada de abordar-lhe, sem ofendê-lo. Fiz um sinal, ele se aproximou e eu engatei o mangueio:
“Escuta, meu camarada, é que, eu, não faz nem meia hora não, q-que, que fui roubado, saca? uma filha da puta me levou tudo que eu tinha e, e-eu, bom, não tenho nem um centavo pro conhaque, de maneira que, pô, dava só pra fiar, sabe, s-só uma dose daquele conhaque d-de um real?”
“Ele é dois, agora.”
“M-mas, há uns dias atrás eu paguei um real por ele. j-já aumentou?”
“Uns dias atrás, o senhor disse bem. além disso, não vendemos fiado.” Falou até que polidamente. Sem gaguejar. A gorda dançava no palco. Mordi os lábios até sangrar. Alguém gritou:
“Cai fora daí sua baleia velha do caralho!” Ela seguia dançando, indiferente aos protestos. Fazia agora acrobacias em volta do ferro. Depois arrastou-se de quatro no chão como uma porca nojenta. Parecia gostar das ofensas. Meu fígado começou a doer. Era como se houvesse um enorme buraco se abrindo; um vazio me devorando como a fome de uma flor carnívora. O número da puta finalmente acabou e ela pegou suas coisinhas no tablado. deu um cotoco pro cara da defesa civil que a xingava e em seguida vimos sua enorme bunda flácida desaparecer atrás de um cortinado puído e triste. Um bate estaca mais animado começou a tocar. Virei pro cara outra vez: “O-olha, d-daqui pro final dessa noite, arranjo esses dois reais e te pago. E-eu fui roubado, é sério!” O cara não disse nada. Seu rosto endureceu até se tornar uma pedra de gelo. Passou uma toalhinha fedida sobre o balcão e se afastou. Sem chance. Quando não se tem nada, você se torna um nada. A impotência é tamanha que a tua covardia se mistura com o medo, causando um estranho embaraço na voz. A impressão que se tem é que você está sempre mentindo quando está falando a mais pura verdade. E um troço estranho e foda. Por outro lado, quando não se tem dinheiro, se enxerga tudo. Uma parte do instinto ainda funciona. Olhei e vi um enorme travesti que bebia sozinho em uma das mesas. Havia umas oito garrafas de cervejas vazias, eu contei. Ela bebia a nona. Parecia bem animada ali sentada mexendo seu enorme corpo no ritmo da música. Trocamos olhares furtivos e ela me convidou com os olhos para sua mesa. Não tinha muito mesmo o que perder, por isso fui até lá. Sentei:
“Tá liso e quer beber uma cerveja, não é? Tava só te manjando daqui.”
“Uma dosezinha de conhaque negro, apenas.” Ela estalou os dedos. Veio outra cerveja e a dose de conhaque. Uma outra puta menos detonada subiu no palco. Dei uma golada no meu conhaque e ele desceu abençoado goela abaixo. O meu estômago fez um chiado como as frigideiras fazem quando se fritam os ovos. Olhei pra figura ao meu lado. Tinha uma boca grande e uns dentes perfeitos. Usava umas lentes descaradas da cor do mel. O gogozão até que era bem discreto. Os cabelos negros e longos desciam-lhe até as costas. Bem feminina, era. Se ficasse ali quietinho ao lado dela vendo as coisas funcionarem, ela poderia, quem sabe, me pagar mais umas doses de conhaque e tudo ficaria perfeitamente bem. Mas quando pensei que atingiria finalmente meu nirvana alcóolico, ela me veio com aquele papo estranho sobre estrelas:
“Procyon é a estrela mais brilhante no céu, cê sabia disso?”
“Como?” A dançarina parecia mesmo menos decadente que a outra. Sempre o mesmo número. Elas se dirigem cansadas até o centro do tablado onde está posicionado o ferro e ficam ali girando em torno dele como umas penitentes. Nunca inovam.
“Procyon é a estrela mais brilhante do céu, e ela nunca está só porque é orbitada por uma companheira anã branca, e o seu período orbital é de mais ou menos – aí ela pensou um pouco com o dedo apoiando seu queixo assimétrico – quarenta e um anos. é, é isso mesmo.
“Não estou entendendo o que está dizendo. Me desculpe! muito barulho, sabe.” Ela bebeu um pouco da sua cerveja e continuou:
“Existem estrelas de várias cores que são chamadas de estrelas anãs.”
Fingi algum interesse. “É mesmo, é?”
“A Procyon, por exemplo, é uma estrela anã.” Tomei uma golada do meu conhaque. Ele já estava pela metade.
“80% das estrelas que vemos no céu todos os dias são estrelas anãs.”
“Ah, é?” Bebi todo o restante do meu conhaque e pedi outro. Só faltava essa. Eu que já pensei ter visto ou ouvido de tudo na vida.
“Há a Syrius que também é tão brilhante quanto a Procyon, no entanto, seu período orbital é de 50 anos.”
“50 anos, só?”
“A mais próxima de nós, cê quer saber?” Poderia dizer-lhe que não, mas ela estava pagando os conhaques. “é, bom, talvez...diga lá!”
“É a Centauri que tem uma cor alaranjada com riscos amarelos e que também são anãs. São as que mais brilham em todo hemisfério.” Tomei uma golada considerada do meu conhaque e olhei muita séria pra ela:
“E como cê sabe de tudo isso?”
“Meu tio. Meu tio era um anão e estudava as estrelas. Me colocava em seu colo e me falava sobre elas, enquanto afagava meus cabelos.
“E cadê seu tio?”
“Foi enterrado esta tarde. As cinco horas da tarde. O mesmo dia e horário em que ele nasceu. O mesmo dia e horário em que foi descoberto uma estrela bem parecida com o sol...” Me calei e fiquei pensando em sei lá o quê. Ela virou-se pra mim de novo e dessa vez disse:
“Cê já foi a um enterro de um anão?”
“Como?”
“Cê já foi a um enterro de um anão?”
“Não, nunca!! nem sabia que anões tinham enterro.”
“É muito engraçado o enterro de um anão. Depois de mortos, ainda diminuem de tamanho.” E assim, de repente, ela desandou a rir. Riu bastante. Seu imenso corpo tremia todo. Risos espasmódicos que faziam tremer copos e garrafas sobre a mesa. Achei que ela não ia parar nunca e comecei a rir também. Nossas risadas ecoaram no salão. A vida é mesmo louca. Depois, ela foi ficando triste, e me disse:
“Existem estrelas que falharam por serem pequenas demais para queimarem, como é o caso de algumas anãs vermelhas. Elas brilham uma pequena porcentagem de sua luminosidade e depois morrem. Essas estrelas nunca vingam.”
Olhei e a puta continuava a girar em torno do ferro. Podia escutá-la cantar:
“ferro nosso de cada dia,
rogai por nós, pecadoras,
assim no céu como no inferno...”
Notei que havia um talho feio que partia do ventre até o glote da puta. Uma visão dolorosa do capeta. Embora fosse de fato um pouco mais decadente que a outra, parecia conter um pouco mais de vida. De brilho. A música realmente ajudava. Sua enorme bunda vibrava. Uma outra dose de conhaque veio e eu fui ficando mais alegre. Olhei para os fundos e notei a presença do mergulhador sentado próximo à janela de telas. Sabia que viria. Ergui um brinde a ele, mas ele não retribuiu. Nunca retribui. Sempre na dele. Calado. A vida é um mistério. Relaxei um pouco. A noite avançava cambaleante. O travesti ao meu lado não falou mais nada sobre as estrelas. Mergulhamos numa espécie de silencio enebriantemente doce. Olhávamos a puta que seguia com seu show. Inclinada para trás, junto ao ferro, mostrava triunfante à plateia, sua imensa buceta encarquilhada querendo engolir o mundo...

Manaus, 19/09/2011

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O ENTERRO DO ANÃO

I – a vida é um charco

É claro que isso não vai dar em nada, eu sei, mas o fato é que eu estava lá, saca? bêbado e completamente desnorteado bem no meio daquela praça de guerra - às duas da manhã de um sábado qualquer, cercado de bebuns por todos os lados. Catei novamente o fundo dos bolsos e necas! nem carteira nem nada. A puta havia levado tudo. Ainda podia sentir na jugular, o frio do aço do seu canivete. Roubado por uma puta. Sacanagem. Definitivamente, mel e conhaque não combinam. Quando é que vou aprender? Estava pensando nessas coisas quando um daqueles bebuns virou pra mim e disse:
“Tonho é o aleijadinho ali. espie o senhor! o porco comeu a mão dele. Ficou engraçado sem a mão. Dizem que a patroa viu tudo do portão e não fez nada. Ficou vendo o porco comer a mão dele no quintal e não fez nada. Depois ela o largou por outro. Foi vingança. Todo mundo aqui sabe que foi vingança. A vida é um charco, meu senhor. Mas tome outro gole. O senhor tá branco. O senhor veio subindo a Frei José dos Inocentes que eu vi. Quem vem da Frei José, para sempre aqui, senta e fica olhando a noite mastigar o vazio. Mas beba rápido antes do Exército de Cristo chegar.”
“Exército de Cristo? que porra é essa?” achei que era alguma sacanagem dele. Tomei um gole da sua aguardente que me oferecia e senti um pouco de alívio na alma. A praça girava ao meu redor. Dali há instantes, vi o tal exército chegar. O cara não estava de sacanagem, não. Os caras chegaram num comboio de kombis e usavam umas fardas verdes imitando as fardas do exército. Depositaram um enorme panelão de sopa fumegante bem no centro da praça e alguns bebuns se arrastaram até lá como umas lesmas condenadas. outros caíram fora. Uma caixa de som foi ligada e um dos soldados começou a pregar as verdades de Cristo. Vi a veia dele aparecer no pescoço. Depois ela queria saltar de lá. Olhei e um outro soldado de cristo enorme e bem nutrido apoiava pesadamente uma das suas mãos sobre a cabeça de um dos bebuns como se quisesse afundá-lo na terra. Falava que queria arrancar o demônio de dentro dele. Eu olhava para àquela cena deprimente, mergulhado numa espécie de semidevaneio. Minha cabeça agora girava com a praça. Teimava em acreditar que ainda restassem alguns trocados no bolso, mas a puta havia mesmo raspado tudo. Mel e conhaque te levam ao nocaute. Te deixam mesmo fodidão. O pé inchado ao meu lado já tinha dado o fora. Uma moça de saia longa e bastante atraente se aproximou e me entregou um folheto: “a verdade de cristo te libertará!” Disse ela. Mas eu já estava possuído e de pau duro. De modo que, não tendo muito o que perder, peguei levemente sua mão e a conduzi levianamente até o meu pênis duro e disse: “A verdade talvez esteja aqui, irmã!” ela puxou imediatamente sua mão dali e me fulminou com um olhar furioso:
“O demônio usa de muitos artifícios.” Disse ela colocando sua mão sobre minha cabeça. A outra ocupava-se segurando uma pequena bíblia:
“Usa mesmo.” eu disse.
“Precisas conhecer a verdade. Só a verdade liberta”.
“Já conheço a verdade, irmã, e estou muito bem com ela.”
“Só existe uma verdade, moço.”
“É? qual?”
“A verdade de nosso senhor Jesus Cristo.”
brrrp. Bateu-me aquele frio escroto da madruga. Não queria tornar aquilo um debate, juro. De modo que comecei a alisar sua mão que repousava sobre minha cabeça. Então eu disse:
“A verdade dele talvez não seja a minha verdade.”
“Como assim?”
“Escute, por que não vamos para outro lugar discutir sobre nossas verdades.”
“O senhor está bêbado e não sabe o que faz e o que diz. por isso, relevo o senhor.”
“E a senhorita tem uns olhos claros e lindos como a de Santa Edwirges.” Santa Edwirges? porra, fui arrancar aquela santa das minhas mais profundas masturbações. Minhas mãos dessa vez tocaram de leve suas pernas que eram torneadas e estavam cobertas por uma saia longa que se estendia até os tornozelos. Olhei bem pra ela. Tinha um rosto parecido com o rosto da garçonete do Bar Holandas. Meu pau deu uma pinicada. Tratei de pressioná-lo com certa força, abarcando também os colhões. Se chegasse inteiro em casa, bateria uma bela punheta, na certa.
“O senhor não tem noção do que diz e do que faz.”
minhas mãos deslizavam agora pelas suas pernas suadas e frias. era como se eu alisasse um torno de gelo derretendo.
“O sangue de nosso Senhor Jesus Cristo banhará o senhor e removerá todos os seus excrementos!”
“Humm, gostei disso.”
“Expiará os seus pecados.”
"Fala mais, fala mais, vai!”
Minhas mãos agora subiam na direção de suas coxas.
“O senhor não tem mesmo noção do perigo, moço!”
“Han, han. não mesmo.” aí ela gritou: “Jarbas!” Olhei e vi um cara corpulento vindo em minha direção. Um brutamontes: O mesmo que há pouco afundava com as mãos a cabeça de um dos bebuns, expulsando os demônios de dentro dele.
“Este é meu irmão Jarbas. Ele vai lhe falar um pouco das verdades também”. Senti os punhos grandes e fechados de Jarbas na minha cara.
“Não precisa, Jarbas! já estava de saída.”
Dei meia volta e caí fora dali.

(continua)

UM CERTO FARRAPO E SUA IMPRESSIONANTE TÉCNICA DE CONTAR HISTÓRIAS SUJAS

UMA FENDA NA NOITE
Este livreto de autoria de Arthur Farrapo é composto de o3 contos – Uma Fenda na Noite, O Pau Dela e A Rasteira. Contos breves e rasteiros.
O estilo do Farrapo é inconfundível. Nos faz lembrar Charles Bukowsky, mas sem querer compará-lo ao mesmo, pois que Arthur Farrapo possui seu estilo próprio. Sua própria pegada. O personagem central de seus contos são as mulheres. Elas aparecem aqui como anjos redentores ou demônios disfarçados. São elas que tecem toda a trama e espalham merda no ventilador. A puta da perna amputada do conto “A Rasteira”, a personagem Branca dos mamilos entumescidos da mais pura loucura, do conto “Uma Fenda na Noite”, e Virna, a viciada ninfomaníaca do conto “O Pau dela”. Uma Fenda na Noite possui uma linguagem direta e sem muitas frescuras. Os diálogos são engraçados, porém, memoráveis. E a violência de sua linguagem – ao contrário do que se imagina – guarda em seu cerne, uma invejável ternura pelos “derrotados” e “excluídos” desse mundo.

Trechos de “A RASTEIRA”

(...) Ela havia amputado a perna, a dona, jovem senhora, próxima ao balcão. Me cheguei e tive tesão pela perna fantasma, imaginando a coxa branca e grossa, igualzinha a outra. No único pé, unhas vermelhas. Chamar para dançar iria parecer ridículo, só sentei ao lado e pedi cerveja, “dois copos de vidros, por favor, não sou leproso, tuberculoso ou aleijão pra copo de plástico.” Pedi desculpa pelo aleijão e a dona nem ligou...”

Vale a pena conferir Arthur Farrapo.
UMA FENDA NA NOITE – LITERATURA SIRRÓTICA, 2011
arturfrp@hotmail.com
revistasirrose@bol.com.br

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

CRÔNICAS DA VIDA MUNDANA

Os livretos “O Rábula” e o “Avião” (contos) de autoria independente do professor Fábio Marcellus, são duas breves obras interessantes a serem lidas. AA primeira, narra a história da personagem Maria – recém chegada do interior à Manaus onde se vê vitima de um roubo ocorrido na embarcação em que veio, e com o auxílio de um rábula (falso advogado), tenta solucionar o problema.
Aqui o autor não revela só a esperteza dos que arquitetaram o plano de roubo na embarcação, mas também a mesquinhez da própria vítima que passa a se beneficiar do ocorrido com a ajuda do advogado.
O caboco aqui não é mais colocado como o coitadinho, a vitimazinha roubada ou enganada na cidade grande, mas como o vilão protagonizador da vida mundana.
O Rábula é certamente um conto que prende e que nos faz pensar.

“O Avião”, é um outro conto que vale conferir pela sua trama realista e imagética, sua linguagem forte e arrojada, e também pelo fio condutor que nos transporta do início da estória até seu desfecho surpreendente. Ingredientes que ao me ver, são necessários a um bom conto.
Drico é o anti herói da trama (avião esperto e malandro) que para sobreviver e se sobrepor aos mais fortes, passa a traficar no bairro Brasileia, mas que bem lá no fundo, ainda sonha com mudanças em sua vida.
Para quem aprecia uma história bem contada sobre tráficos, bandidagem – dentro de um olhar antropologicamente bem apurado e humanista, esta obra é uma pedida.
Fábio Marcellus marca bem sua estreia, nos contando histórias de cunho realista e social. Portanto, se toparem pelos bares do centro da cidade com o este autor divulgando esses dois livretos de cunho alternativo, não hesitem em comprar. Vale a pena ler!

Márcio Santana

Manaus, 29 de setembro de 20011

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXX

LORD. cê aliás ia falar sobre tua experiência no garimpo.
ÍNDIO. ia, é? sim, eu ia, mas houve este corte, mas ainda posso te dizer que bom, havia esse lugar chamado Pomeral que era um garimpo e que ficava entre Mato Grosso e Rondônia; lá mesmo onde fui atirado daquele ônibus e que depois andei perdidão a madrugada toda e uma parte do outro dia também até esbarrar com aqueles dois figuras, o Boliviano e o Mato Grossense, que me levaram a este lugar com promessas de que podíamos ficar ricos com a extração de ouro. e quando lá cheguei, claro, um impacto, cara, porque o garimpo é aquela onda toda, né cara? fiquei um tempo olhando abestalhado para aquelas enormes dragas com seus tubos de sucção de aço chupando as pedras preciosas que ficavam no fundão do rio, porque o ouro que é extraído dos rios de Rondônia é feito por meio daqueles enormes monstros mecânicos, entendeu? e eles ficam ali só na deles drenando a areia debaixo que contém o ouro, então esses MONSTROS MECÂNICOS ENORMES vão perfurando, né, mais e mais, uns trinta metros de profundidade, não, não, não, não, trinta metros, não, mas, uns quinze ou vinte, mas chega a trinta metros sim, e bom, aí que, o ouro é sugado por um tubo de sucção de aço e em seguida é despejado numa esteira toda feita de carpete responsável pela absorvição daquela areia que contém o ouro... depois que este ouro é retirado da esteira, ele segue para o processo de peneiração onde aí sim, vão ficando os primeiros indícios de ouro que serão colocados em uma cuia de ferro junto com o azougue que é um metal líquido popularmente conhecido como MERCÚRIO, né? ele absorve somente o ouro e pronto, aí está o princípio de tudo...
LORD. todo um processo, eu sei, mas... fala um pouco do aspecto daquelas pessoas ali. isso me interessa saber também...
ÍNDIO. bom, temos que avaliar assim: patrões e empregados, desde os primórdios, né cara? a eterna luta de classes. noventa por cento dos empregados eram pessoas rudes; pessoas assim, bem sofridas mesmo, assim, tipo, sem perspectiva alguma na vida a não ser sair dali com bastante dinheiro no bolso, chegar em um bar – e isso deixa eu lhe dizer - faz parte até da vaidade deles, que era de chegar no bar, fechar o bar, juntar mulheres e beber, beber e beber e mostrar seus cordões de ouro e seus dentes de ouro, e, é é é, essa coisa de mostrar o cordão de ouro, ela é mais predominante entre os patrões, mas existiam a piãozada que gostava de exibir seus cordões de ouro também...
LORD. havia alguma alegria ali? tipo, como era o ambiente lá, cara? era triste, algo assim?
ÍNDIO. um contraste, né, cara – uma falsa alegria era o que se podia ver no rosto daquelas pessoas... Burguês, cara, se eu falar para você porque raios eu fui viver essa vida, cara, especificamente no garimpo - e agora sim fiquei bastante entusiasmado para lhe contar sobre minha vida no garimpo porque há uma porção de coisas que talvez não caiba neste teu livro que pretendes escrever porque eu também não quero sair atropelando as lembranças porque sei muito bem que pode atrapalhar todo o processo, e tu me conheces muito bem que quando começo a falar eu, eu, eu... me emociono, pacas.
LORD. não, não, não, quero que tu faça apenas um apanhado dos fatos, tipo, o aspecto do lugar, das pessoas...
ÍNDIO. começa, começa, começa, assim... como podemos começar, bom, começamos assim falando das currutelas que é o principio de tudo, é onde tudo começa; bares, farmácias, comércios, alojamentos, bordéis, e bom, a isso dá-se o nome de currutelas, e as currutelas nada mais são que picadas abertas na mata. por exemplo, cara: uma draga daquela fareja e encontra ouro ali e então a notícia se espalha, e o que acontece é que, obviamente só terão acesso aquele lugar através do rio, então as pessoas como pragas se dirigem para lá por meio de balsas ou voadeiras. os que chegam de balsas trazendo as dragas, são para cavucar o ouro, enquanto os outros que ali chegam de voadeiras, são para derrubar as primeiras árvores para edificar o bar...
LORD. são as primeiras picadas, né?
ÍNDIO. são as primeiras picadas para edificar o bar, depois uma outra árvore para edificar a farmácia, e depois mais outra que é pro comércio, e mais outra e outra até ir se formando um organismo vivo que é a currutela, e aí cê sobrevoando de helicóptero o que você vai poder ver e o enorme vácuo que fica na mata e aquilo dói, cara!
LORD. aham. caralho...
ÍNDIO. a currutela geralmente começa no rio e avança em linha reta para o interior da mata. uma reta, deixa eu ver... bom, cem a duzentos metros em linha reta, aí assim, as edificações vão se formando uma ao ladinho da outra, tipo, os bordéis, os alojamentos, as farmácias, os comércios, os bares... mas o que predomina mesmo são os bares que na verdade são bordéis, são mais de... não sem bem te precisar, mas sei que tudo que chega às currutelas vem pelo rio, agora há algumas currutelas – e são poucas - que tem o privilégio de receber as provisões pela estrada, mas só algumas, a maior parte vem pelo rio mesmo...
LORD. e a dona desses bordéis, cara, a maioria são mulheres, não é mesmo?
ÍNDIO. putas velhas que já não servem mais para o sexo, mas que são úteis para organizar um bordel e recrutar meninas.
LORD. e essas meninas são de onde exatamente?
ÍNDIO. no caso de Rondônia, Burguês, a maioria são rondonienses mesmo, acreanas, paraenses, ou até mesmo amazonenses...
LORD. elas são iludidas, é? como funciona?
ÍNDIO. algumas são iludidas sim, cara, outras não; sabem para o que vem. só que elas não tem uma noção do que vão encontrar de verdade lá; elas pensam que é mais um bordel da cidade, e não é. o que elas vão encontrar lá são homens rudes que compram o teu amor com dinheiro e ouro e se não rolar sintonia, eles matam, e lá eu conheci a Rose, cara, que era uma acreana linda linda linda, cara, e as acreanas, deixa eu te dizer, são lindas de matar, e a Rose foi o seguinte, a Rose foi mais uma daquelas garotas iludidas com promessas de um emprego decente em Rondônia, mas que acabou indo parar no garimpo de Pomeral.
LORD. e quem foi que a recrutou?
ÍNDIO. ela me contou tudo, cara, tudinho. uma certa mulher havia prometido à mãe da Rose – e isto ainda em RB, manja só, que ela empregaria a filha dela como garçonete em um restaurante em Rondônia, e de fato essa tal mulher tinha mesmo um restaurante, só que, as garotas que eram contratadas por ela para trabalhar neste restaurante, cedo ou mais tarde eram vendidas a outras pessoas proprietárias de bordéis nos garimpos. foi o caso da Rose, que trabalhou alguns meses neste restaurante e depois foi vendida a um desses bordéis que ficava em Pomeral.
LORD. depois que entra, não sai mais, é?
ÍNDIO. é difícil porque é o seguinte, né, cara, tu tá no antro da perdição, imagina, aonde a Rose foi morar era um puteiro, cara, tu passa a morar num quartinho feito de lona com vigas de madeiras, chão de barro e cobertura de palha, e é nessas condições que tu passa a viver, porque no garimpo não existe luxo, não, o garimpo, Burguês, é que nem fábrica pré-moldada, pré-moldada não é isso? quando o ouro não dá mais pé, cê desmonta rapidinho e vai embora para outro estado, porque cê sabe que a currutela é um organismo que vive em função do ouro, e chega um dia que tudo seca, cara, e aí é hora de desmontar tudo e ir embora, quem ganhou, ganhou, quem perdeu, perdeu, é a lei do garimpo, por isso não há uma necessidade de se construir habitações de conforto porque ninguém tá interessado nisso; tendo um quartinho, bebida, dinheiro e mulher, tá bom demais porque os caras ali são animais, animais mesmo, não estão nem aí, cara, eles matam brincando, É A REGRA, e aí quando acaba o ouro o pessoal desmonta tudo rapidinho, tira a lona pou pou pou pou pou tudo que é pau e palha e, a coisa mais horrível, cara, é uma currutela depois que o ouro acaba, que coisa mais feia, cara... sabe que é tu ver só cachorros vagando perdidos pela estrada porque não alcançaram as balsas e tiveram que voltar? cachorros e cadelas gordas que ficaram para trás e que mais tarde vão vão vão ser devoradas por onças ou por outros animais selvagens, ou então ficarão magras e morrerão de fome porque... acabou, cara, acabou, e o que era uma picada, logo vai desaparecer e aí a mata vai se fechando de novo e tomando conta de tudo outra vez, como algo sobrenatural, e numa ocasião, eu fui em uma, cara, fui em uma currutela imensa e toda iluminada com luzes de arraial, cara, não era luz de motor, não, eram luzes de verdade, luzes de verdade, e era assim de ponta à ponta toda iluminada, e eram umas luzes tristes de cortar o coração, e não eram somente as luzes que me deixava com o coração cortado, não, mas a musiquinha que tocava o dia todo em um alto falante invisível; saca aquele orgãozinho de carrossel que cê ouve quando você vai aos domingos a um parquinho pobre desses arrebentado e fica ali olhando a roda-gigante girar sem parar e aí você lembra que está sozinho na vida e que não há nada mais importante a fazer do que ficar ali olhando aquela imensa roda girando e girando e girando e aquele orgãozinho triste tocando lá no fundo e aí você se pergunta afinal, e agora o que que eu vou fazer com a porra da minha vida agora? não há um sentimento pior que a solidão, e tudo ali naquela currutela era solidão e lembranças mortas, é aí que você se dá conta de verdade que está em um garimpo longe de casa e que está fodido porque você não juntou nenhum ouro até agora, nada de nada, que tudo é uma ilusão, que a porra do ouro é uma ilusão, que tua vida é uma grande ilusão...

terça-feira, 20 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXIX

ÍNDIO. olha, Burguês, isso aconteceu no início dessa década, logo que voltei de Porto Velho. fiquei muito tempo fora de Manaus e quando voltei eu precisava me relacionar novamente com a moçada, então lembro que a gente se reunia no LÓTUS BAR, que ficava na rua de cima, e o proprietário, o Marcelo, era um cara legal. nós levávamos as nossas fitas e ouvíamos o que queríamos, então havia toda aquela agitação daquele final dos anos oitenta...
LORD. quantos eram ao todo? ÍNDIO. uns dez aos quinze, era. tinha dias que chegava a quinze pessoas.
LORD. tinha garotas no meio também?
ÍNDIO. tinha. lembro que havia três irmãs com nomes esquisitos.
LORD. tipo?
ÍNDIO. terminavam com LÂNDIA, tipo, Andrelândia, Silverlândia, e a outra cara, deixa eu lembrar, eu não, não, não estou lembrando agora, mas terminava com lândia também...mas esta tinha um apelido estranho e eu lembro.
LORD. e como era?
ÍNDIO. era, Careca.
LORD. Careca?
ÍNDIO. isso, era Careca, porque ela tinha um cabelo muito baixinho, muito regadinho, saca, e ela pintava de azul, parecendo um personagem da turma da Luluzinha...
LORD. bom, tinha garotas também...
ÍNDIO. tinha, e rolava muita cerveja porque a maioria trampava.
LORD. tu trampava em quê?
ÍNDIO. trampava de chapeiro num lanche que ficava no bairro da Cachoeirinha.
LORD. sei, continua.
ÍNDIO. quando tínhamos dinheiro tomávamos cervejas, né? mas quando estávamos durangos, aí inteirávamos pra cachaça ou montila. fazíamos caipirinhas, batidas e deixava rolar, mas quando estávamos por cima de grana mesmo aí rolava basicamente Cerveja, Campari, Conhaque, e até um whiskizinho, barato mesmo, tipo Natu Nobílis, por exemplo, e é claro, o fumo não podia faltar. aí que sexta feira, um carinha da turma deu a ideia de irmos á praia da Ponta Negra: “pô, porque não vamos dar uma esticada na Ponta Negra a turma toda, hein?” aí a gente, a gente...meio que receiosos de ir pra lá porque naquela época a Ponta Negra era uma porcaria, né? mas aí aquele papo de curtir uma noite diferente, acabamos decidindo ir todo mundo...e aí foi que aquelas nossas idas à praia da ponta Negra nos fins de semana, tornaram-se frequente entre nós, e isto foi durante quatro meses - enchíamos a nossa cara no Lótus Bar, e já muito doidões, pegávamos um ônibus até a estação da Matriz, e de lá o último, rumo à Praia da Ponta Negra.
LORD. as garotas também iam?
ÍNDIO. todos iam, cara, numa algazarra só. chegando lá, era pura curtição. cada um correndo atrás do outro - as três lândias nuas na praia, todos nus, bebendo e fumando cada um seu bagulho sossegado, olhando as estrelas, um frio do caralho, mas ninguém sentia falta do cobertor não, saca? nunca rolou bronca nenhuma, não, mas até aquele dia, né?
LORD. quê que rolou?
ÍNDIO. a morte do Sapo, cara!
LORD. Sapo? quem era o Sapo?
ÍNDIO. o Sapo era um figura da turma. foi quem deu a ideia do passeio á Ponta Negra. já chego lá.
LORD. soh.
ÍNDIO. o Sapo era um figura querido da turma, só que ele ficava ás vezes inconveniente quando bebia muito. nesse dia ele achou de misturar tudo, saca?
LORD. como era o nome dele mesmo?
ÍNDIO. cara, o nome dele sinceramente não sei, todos o conheciam como Sapo ¬- Sapo, Sapo, Sapo, Sapo... um tipo assim, entrocadinho, moreno, bem escuro, assim, uma aparência de um sapo mesmo, mas era gente fina.
LORD. sei.
ÍNDIO. neste dia foi muita gente, muita gente, porque também tinha o pessoal do Boquinha e do Bode. o Boquinha era um camelô e ele morava em São Lázaro, só que ele vinha do bairro dele curtir pra cá, bebia com a gente e tal. já o Bode era prata da casa, se criou aqui mesmo. nesse dia rolou muita bebida, a gente ia curtir muito, sempre curtíamos muito... então nesse dia foi uma festa, todo mundo se confraternizando e eu me lembro que não era feriado nenhum, e muito menos aniversário de alguém, era só um fim de semana qualquer, um sábado cara, e quando amanhecesse o dia, voltaríamos todos aos trapos, feito zumbis, de volta para as nossas casas, mas sem arrependimento ou culpas, então eu ficava ali as vezes sentado em algumas daquelas pedras olhando o rio e a noite, rabiscando poemas na minha cabeça e todos aqueles meus companheiros ali bebendo, se divertindo e eu fazendo parte daquela alegria também e eu nunca tinha visto tanto brilho nos olhos do Sapo naquela noite. ele até cantou, coisa que nunca fazia; lembro que naquela noite ele chegou comigo nas pedras e disse: “e aí, Sam, tá curtindo essa noite, cara?” aí eu disse: “pô, que massa”. ele acendeu um preto e passou pra mim. ficamos os dois ali fumando nas pedras olhando a paisagem; um vento do caralho soprava. clima agradável, saca? maneiro mesmo. depois não falamos mais nada, ele deu um pega considerado no preto, tomou um gole da minha cachaça, pulou da pedra, e já totalmente nu, correu na direção do rio. vi ele mergulhar e olhei a lua. ela era toda feita de prata; tudo era lindo. as três lândias também eram lindas caminhando nuas e descalças na areia. uma comuna, cara. me senti numa comuna de verdade. mas aí que, já por volta das sete da manhã, quando nos reunimos pra ir embora, foi que sentimos a falta do Sapo. começamos a chamar por ele e nada. não era justo alguém ficar pra trás. as lândias sentiam frio. todos tremendo ali na areia, olhando desnorteados para todos os lados. nenhum sinal do Sapo. chegamos a pensar que ele tivesse ido embora sem a gente. mas seria muita falta de consideração do cara. o trato sempre foi de irmos todos juntos. havia alguma coisa de muito errado naquilo tudo. nos dividimos em dois grupos e começamos a procurar por ele. o sol vindo com tudo. “ninguém vai embora sem o Sapo.”, disse o Marcelo. andamos de um extremo ao outro da praia. procuramos nos bares de cima, mas nenhum sinal do Sapo. comecei a sentir frio e fome. as lândias encolhidas, começaram a chorar. eu olhava para os rostos secos e baqueados dos colegas, enquanto o Sapo, nada. um deles cogitou: “ele foi embora, moçada.” eu disse: “não, não foi, não. ele pode ter se afogado.” olhamos todos pro rio atrás de uma resposta. o Marcelo sugeriu que mergulhássemos, então ele, o Boquinha, o Bode, eu e os outros, mergulhamos e ficamos mergulhando naquele rio gelado acho que, até umas nove da manhã, e nada dele. fui o último a desistir e caminhei trincando os dentes na direção dos colegas que estavam aglomerados como zumbis próximos das pedras, e aí é que tá, né, cara, aí é que tá, se você deixa alguém estragar a tua noite, acaba tua noite, acaba tudo, né cara? acabou o clima, e o Sapo conseguiu acabar com a nossa noite porque no fundo todos ali sentíamos que havia acontecido alguma coisa de muito ruim com o Sapo. o cara podia até ter morrido ali, mas não ali naquela hora, naquele momento, entendeu?
LORD. e o cara morreu mesmo?
ÍNDIO. desapareceu, cara. e isso é sério.
LORD. como desapareceu? ele se afogou, então? não encontraram o corpo dele?
ÍNDIO. o Marcelo perguntou quem de nós havia visto o Sapo pela última vez? fiquei pensando que eu havia falado com ele uma última vez nas pedras antes dele mergulhar no rio, e depois não lembro de mais nada porque o álcool me nocauteou. mas aí que o Bode, que até então tava muito mais quieto e estranho que os outros, nos falou que o Sapo havia dito pra ele que atravessaria para a outra margem; aí que rolou uma aposta entre eles, e foi então que o Sapo, já muito doido, aceitara a aposta e então ele pulou no rio, e depois o Bode não lembrava mais de nada porque também caiu nocauteado na areia. foi aí então que não tínhamos mais dúvidas que ele havia se afogado mesmo porque ninguém conseguiria atravessar aquele rio turvo em pleno estado de embriaguez. puta que o pariu! gritou a Careca. os banhistas do domingo começaram a chegar porque já eram quase onze da manhã e o sol tirânico queimava as nossas peles secas. os banhistas olhavam curiosos pra gente. uma das lândias perguntou se íamos deixar pra lá ou se íamos chamar a policia ou o corpo de bombeiros. o Boquinha ainda cogitava que o Sapo tivesse ido embora, que devêssemos ligar para casa dele para checar. mais ninguém sabia nada da vida do Sapo, de que pântano ele veio, nem onde ele morava, nada. e se chamássemos a polícia, podia foder todo mundo.
LORD. bom, o cara não voltou mais? encantou-se, é?
ÍNDIO. bom, aí eu vi o desespero real nos olhos dos meus colegas. eu não entrei muito em desespero porque eu sempre fui um cara preparado para a morte, né cara, quer seja a morte de um familiar meu ou de uma outra pessoa... pô, não, cara, fiquei ali sentado com a moçada pensando numa saída pra aquela merda toda... chama a polícia! chama a polícia! alguns queriam, outros não, isso vai dar em merda, cara, vai dizer que matamos o cara; foi então que todos resolvemos voltar para casa e acreditar que ele não tivesse morrido, que de uma hora para a outra, naquele dia mesmo, ele resolvesse dar as caras pelo LÓTUS, e esperamos por ele o dia todo, e na manhã seguinte também, e no outro dia também, a semana toda, o mês todo, até se completar um ano, e nada do cara aparecer. o fato é que ele nunca mais voltou. depois de um bom tempo, de um bom tempo mesmo, quando voltamos a nos encontrar no LÓTUS, fizemos um pacto de nunca mais tocar no assunto, e aí então naquela noite a turma se desfez para sempre como que num encanto...
LORD. isso é maluco cara, porque ninguém desaparece dessa maneira. ninguém encontrou mais o corpo?
ÍNDIO. não, nunca mais!
LORD. e a polícia?
ÍNDIO. nem sombra de nada.
LORD. como é que cê vive com isso até hoje, cara? não rola culpa, não?
ÍNDIO. sei te explicar bem não, mas rola, rola, um outro tipo de sentimento que não é bem, assim, culpa, não, saca? é um... sentimento de peso na alma ou o que quer que seja que exista em nosso interior, mas que não é bem, culpa, não.
LORD. sei, tipo, algo bem parecido com a ideia daquele teu livro de poemas sobre a morte de quase cem páginas que pelejavas escrevendo antes de viajar para Porto Velho, lembras? sobre quando você... mas você não estava preparado ainda pra desenvolver bem esses mistérios profundos da alma, só que – na minha opinião sincera, é que, tudo agora é muito mais interessante porque agora, podes fazer um resumo fodido de bom de tudo que se relaciona com a morte porque estás muito mais bem preparado agora para falar mais abertamente dela porque cêe viu a morte uma centena de vezes presente e eu não duvido mais de sua capacidade, não de desmistificação, mas muito mais de interiorização, cê me entende?
ÍNDIO. aham... mas olha... rola mais cerveja, Burguês? tô durango.
LORD. rola sim. mas pô, todo esse papo sobre morte...
ÍNDIO. que que tem?
LORD. me deixou com frios nos pés e aqui na nuca também.
ÍNDIO. e eu nem te falei da metade das mortes que eu vi... uma centena delas como cê falou...

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XVIII

(Jessé no fundo: como cachorro na noite, vou seguindo meu caminho)

LORD. como é o negócio?
ÍNDIO. era um domingo triste como esse. o filho duma égua esperou meu cunhado abaixar pra amarrar o tênis e aí, enfiou a faca na bexiga dele. isso tudo lá embaixo, na Raquel. eu vi da minha janela o caminho que meu cunhado fez com a faca enterrada na bexiga. achei que estivesse bêbado, por isso não liguei muito. tava muito chateado porque ele foi beber sozinho daquela vez. o infeliz chegou vivo até em casa cambaleando, mas na manhã seguinte, morreu no hospital com hemorragia interna. quando me deixares em casa, vou te mostrar direitinho o caminho que ele fez. ainda há marcas de sangue no asfalto. e olha que já faz uma cara de tempo.
LORD. tipo o quê?
ÍNDIO. uns... três anos atrás.
LORD. tudo isso? mas e a chuva? e o tempo?
ÍNDIO. a chuva não lava o que o tempo não apaga.
LORD. só.
ÍNDIO. meu cunhado era um cara legal. tirou minha irmã da zona e fez um puxadinho aqui mesmo pra ela. bebíamos juntos aos domingos e torcíamos para o mesmo time. mas ai que naquele domingo ele queria beber sozinho na Raquel e aconteceu o que aconteceu. uma discussão besta, um mal entendido, sei lá, ninguém sabe. sou índio, cara, e eu mato. quando soube, me armei de facão e desci até a Raquel, mas nem sinal do filha da puta. té hoje. polícia não resolve nada. quem resolve é o homem. de modo que se eu encontrar esse filho duma puta vivo até hoje, eu mato na degola. agora vou te dizer uma coisa, eu tenho um irmão caçula muito querido que sei que ele não presta no sentido de não fazer nada na vida, só querer beber, fumar maconha e olhar pra lua, mas se alguém encostar no meu irmão, eu mato, sacou? tenho sangue manaó que corre aqui nas minhas veias. e este meu irmão é a única pérola que eu tenho em casa. e se alguém tocar nele, eu mato o cabra. faria sabe como? bom, eu pegaria o cara... quer dizer, posso descrever como eu faria? tem algum problema?
LORD. não, manda, vai.
ÍNDIO. grava aí então: eu pegaria o cara, vou te falar francamente, eu pegaria o cara, chamava uma moçada aqui do bairro, o Lalau, o Pirapitinga, o Ratão e o Zenon, a gente levava o cara pro meu quintal, amarrava ele numa árvore, pegava um chicote que eu tenho lá em casa - um chicote de corda de náilon - surrava-lhe bem as costas dele, aí depois, com o terçado, torava-lhe a mão direita, depois a esquerda, aí então um pé, depois o outro, entendeu? aí o seguinte, cara, arrancava-lhe o pênis e os sacos, depois embolava tudo e enfiava-lhe na boca para que ele parasse de gritar porque eu sei que a dor é grande, mas purifica, e aí então, com um único golpe, partiria seu crânio ao meio, dando por encerrado a sessão.
LORD. e o corpo? o que tu ia fazer com o corpo?
ÍNDIO. enterraria ali no quintal mesmo, ou então daria os restos pro Ernesto que anda velho e sem fome.
LORD. putz, cara, que frieza? farias tudo isso mesmo?
ÍNDIO. faria, cara, porque eu faço!
LORD. de repente, teus poemas são tão humanos, e agora tu me dizes isso.
ÍNDIO. é cara, mas ele matou meu irmão, então ele não é humano.
LORD. tipo, código de Amuhrab?
ÍNDIO. é isso mesmo, cara, olho por olho, dente por dente.
LORD. mas tu fazendo isso, tu não serias mais desumano que o cara que matou teu irmão?
ÍNDIO. (rindo bem alto) imagina, cara, se eu faria isso. tô brincando, tô brincando...
LORD. affiii... eu, eu, quase que acreditei, cara. me arrepiei todinho.
ÍNDIO. imagina, Burguês, tava só tirando uma onda contigo porque tua alma é uma flor. é claro que se um cara matasse meu irmão, eu chegaria com a justiça e diria: toma justiça, agora resolve este caso. mesmo sabendo que a justiça não funciona nesse país. imagina, cara. não mato um carapanã. passo mal com sangue, cara.
LORD. (sorrindo mais calmo) por que matar, né cara? olha ontem mesmo eu cheguei em casa aí tinha um sapo no banheiro, um sapo...
ÍNDIO. ah, cara, não mato, não mato...
LORD. minha mãe gritou, cara, ela queria que eu matasse o sapo, mas não mato sapos, aranhas de parede, não mato. tenho pavor de aranhas de parede, mas não mato... minha mãe tem horror de gias, quando ela vê uma gia ela entra em histeria e põe a casa de pernas pro ar, aí eu digo, calma mãe, é só uma gia. mas como explicar que o medo é algo que construímos dentro da nossa cabeça?
ÍNDIO. porra, o Monjica trabalhava isso maravilhosamente bem, e ninguém sacou nada. o cara virou um pastelão.
LORD. lembra da Sala Especial ás sextas feiras? assistia os filmes do Monjica na sala especial.
ÍNDIO. se lembro, cara, eu me acabava em punhetas. já batia punheta nessa época. vai, vai, vai!! ahhhhhh... como era doce o meu francês...
LORD. eu sentia uma certa excitação, não vou mentir... mas eu batia punheta mesmo era nos filmes do Jece Valadão... sei lá, aquele cara tinha uma pegada boa.
ÍNDIO. Burguês, olha, sempre digo pra minha filha e pra minha esposa: o FraNZ é um cara bonito, um cara... que tem muitos conhecimentos...não é rico, mas deve ter um dinheirinho sobrando em algum banco, mas trabalha e ganha razoavelmente bem – tem uma mãe maravilhosa, com todo respeito, mas eu francamente não sei o que ele tanto busca... o que tanto cê busca, Burguês? fala pra mim o que tu quer saber mais? posso te ajudar, cara, o que tanto cê busca?
LORD. símbolos comuns da vida. cê é uma referencia pra mim. te conheço uma cara, e o que eu busco não está nos condomínios... quando eu sempre digo que conheço um poeta maravilhoso eles me perguntam, aonde ele mora? aí eu digo, em Petrópolis, aí eles dizem, em Petrópolis? sim, em Petrópolis, cara, ele mora em Petrópolis mermão, lá em seu barraco lá, cara, vai questionar? o cara tem um pensamento, as palavras pulsam no papel, estão lá pulsando nesse momento agora, cara.
ÍNDIO. cara, me lembraste o Zeca falando.
LORD. ás vezes incorporo o Zeca. mas deixa eu te dizer: no seminário de ontem na faculdade, eu estava bêbado, eu apresentei um seminário bêbado, li-te-ral-men-te bê-ba-do, e no final da minha apresentação, eu rasguei o poema do Bilac que eu deveria ler, e no lugar, declamei o seu.
ÍNDIO. como foi isso?
LORD. foi o seguinte: quando saí da tua casa eu parei no boteco e bebi pra caralho, depois do trabalho enchi a cara novamente, cheguei na faculdade literalmente bêbado e quando cheguei lá pra apresentação, eu vi a sala toda enfeitada com cartazinhos, painés, retroprojetores, tudo muito organizadinho, e eu tinha no bolso apenas um roteiro amassado do que eu supostamente iria falar sobre os parnasianos, e quando chegou minha vez, eu disse que achava um porre falar dos parnasianos e que não deveria ler aquele poema de 04 versos todo arrumadinho do Bilac, que ele fosse á puta que pariu que eu não ia ler merda nenhuma dos parnasianos e muito menos dos modernistas, acho que meti os modernistas no meio também, sei lá, e aí então eu acabei rasgando o poema do Bilac ali mesmo e peguei o do Sam e comecei a ler e todos ficaram me olhando odiosamente, e como era longo aquele seu poema a professora não deixou que eu o concluísse, dizendo: o senhor fugiu da pauta, seja mais breve e nos fale com clareza sobre o que lhe foi proposto, e contenha-se, Sr. Franz, o senhor está nervoso demais... eles nunca entenderiam toda a minha fúria, Sam, eu queria na verdade que todos soubessem que o marido daquela filha da puta - que no bimestre passado havia me reprovado - escrevia poemas parnasianos imundos e hoje é membro da academia, e é por isso que eu odeio cada vez mais os parnasianos.
ÍNDIO. eu agradeço pela lembrança, Burguês, mas seja franco, cê me acha um poeta de verdade?
LORD. tu és um poeta, cara. a não ser que tenhas me enganado todo esse tempo.
(RISADAS DO ÍNDIO)
ÍNDIO. mesmo assim, liso, sem dinheiro? te explorando todas as vezes que põe os pés neste bairro?
LORD. tu és um poeta feio e liso, cara! e eu te amo por isso.
(nesse instante os dois riem, e logo depois param e prestam atenção numa canção idiota que toca, mas não dizem nada. mais tarde, quando o fluxo de bebuns diminuem no bar da Maria Pinto, o Indio dá um jeito de ouvirem Billie Holliday que FraNZ trazia escondido consigo em sua bolsa de carteiro, e seguem conversando melancolicamente ao sabor da música...)
LORD. cara, agora é outra onda. ouve só esse sopro de sax.
ÍNDIO. Ella Fitzgerald, é?
LORD. não, cara, é Billie Holliday. manja só esse trompete no fundo. quanta tristeza, meu Deus!!
ÍNDIO. é como, é como...
LORD. é como olhar a chuva de tarde e chorar de saudade olhando os móveis da minha casa, os retratos antigos na parede, as cortinas da sala, a sombra das garrafas de bebidas e os lenços coloridos da cabeça compondo a silhueta da minha mãe sentada nos fundos da sala, pernas cruzadas, fumando sozinha seu Continental e ouvindo Benito de Paula ou os Brutos também amam.
ÍNDIO. sua mãe fumava, cara?
LORD. fumava e bebia tranquilamente todo fim de tarde. era como um ritual: ela colocava um disco na vitrola, servia-se de um bom whisky, acendia seu cigarro e ali ficava em silencio, pensativa. a casa enchia-se de seu perfume materno e de uma tristeza bonita e intransponível. eu me aproximava da sala sorrateiramente e me punha ali só para vê-la congelada no tempo. era como se eu nunca mais fosse tocá-la, ou voltar para dentro de seu útero. isto em 79.
ÍNDIO. isto tudo que me disseste me tocou muito. ficou um doce-amargo na boca. não consigo ter uma lembrança boa assim. é tudo tão enevoado. mas agora senti a pureza do sopro. é como ir folheando devagar as páginas do “Subsolo” do Dostoievsky.
LORD. né?
ÍNDIO. quanto àquela tua pergunta inicial antes de ouvirmos Billie, lembras? se estou bem lembrado dos pormenores, né cara, os detalhes bem não... realmente, a última vez que te contei isso já faz quase um ano, e este ocorrido já avança para os dez anos. agora tu achas mesmo necessário contar?
LORD. cê quem sabe.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXVII

UMA NOVA GRAVAÇÃO
(Bairro de Petrópolis – 1998)
(TILINTARES DE COPOS E BARULHO DE MOTO ARRANCANDO NO FUNDO)

ÍNDIO. este bar aqui, Burguês, é da Maria Pinto. te trouxe aqui porque aqui é o único bar deste bairro que ainda bebo.
LORD. gostei daqui, Sam.
ÍNDIO. chego aqui, bebo o que eu quero, ouço o que eu quero, falo com quem eu quero. nos outros bares as pessoas me odeiam. não suportam minha cara, sabe. ainda hoje quando vou a um mercadinho lá embaixo, as pessoas olham pra mim, assim de lado, como se dissesse, maconherozinho, cachaceiro, vagabundo, pilantra; até pederastazinho já ouvi chamarem por trás. mas o que eles não sabem é que eu sou o fundador desse bairro. quando cheguei aqui essa gente nem existia. eu andava livre, subia nas árvores e tomava banho nu nos igarapés que corriam atrás da rua Raquel - hoje tomada pelos traficantes aqui do bairro, saca? o que eles não sabem é que sou poeta e que ajudei a fundar a sede do Partido Comunista aqui no bairro, e que graças ao partido, trouxemos melhorias pra cá, tipo, água, luz, posto de saúde, escola... e quem sou eu agora?
LORD. nossa, cara, que sensação mais escrota de injustiça essa.
ÍNDIO. mas deixamos de lado. ouviremos música sacra e dançaremos na chuva, cara!
LORD. isso seria maravilhoso!
(um pagode assassino tocando no fundo: não quer saber de nada não quer ver ninguém)
ÍNDIO. olha, Burguês, eu não quero ter vínculo algum com essa poesia que tá aí, sabe? eu sou poeta assim, sabe, calado, da noite. ando sozinho, sabe, e eu quero botar minha poesia na rua dessa maneira, saca? sem muito alarde porque sou tímido pra caralho, sou tímido mesmo. eu escrevo a poesia e não quero que ninguém veja ela, ou a veja, arghhh, esse nosso português é horrível...
LORD. não esquenta, não, estamos falando uma linguagem bem coloquial aqui.
ÍNDIO. a coloquilialidade, arghhh... enrolou tudo agora!
LORD. uma linguagem solta e sem frescura, cê sabe disso.
ÍNDIO. não, não, vale tudo, eu sei! mas é o seguinte, cara, minha poesia sai das entranhas do meu barraco, e você conhece muito bem o meu barraco. muitas vezes eu escrevo sozinho lá dentro, sob luz de velas. tenho mais de vinte poesias inéditas que eu queria te mostrar. só quem sabe disso sou eu mesmo.
LORD. não são poesias póstumas, não, né?
ÍNDIO. não sei, seu eu morrer depois, pode se tornar póstuma.
LORD. (rindo) cê acha que aos quarenta anos é a idade ideal de morrer?
ÍNDIO. aos quarenta? se eu morresse hoje tava bom demais. eu ia botar muita fé em você, porque a primeira coisa que cê deve fazer após minha morte é o seguinte: deve ir lá no meu barraco e dizer: “Socorro, cadê os poemas do Sam? onde estão? a Socorro banhada em lágrimas diria a você: “estão ali, numa bolsa de palha dourada pendurada com chocalho!” e você com aquela gana de botar logo as mãos nos poemas, né: “tá bom, chora aí que já estou indo...” mas é claro que tudo isso é brincadeira, vamos parar com isso... não, mas, olha Burguês, tipo assim, ó, se eu morrer primeiro que você, fica acertado assim, cê leva para sua casa os poemas e cuida bem deles pra mim, porque é muito provável que, com essa vida que eu levo, bebendo e fumando desenfreadamente, eu me despeça desse mundo antes que você. afinal, não sabia não, né? mas sou cardíaco, como o meu pai. sou cardíaco. outro dia agonizei na cama, e pra eu poder respirar, a Socorro teve que dar porrada por várias vezes em meu peito pra eu poder voltar a viver. a Socorro é companheira, ela não me deixa morrer e eu não sei o motivo... então se eu morrer primeiro que você, fica assim, ó... eu tenho é... eu nunca disse pra ti, mas eu tenho é... além dos meus poemas, duas peças para teatro, (LORD NÃO SE CONTENDO DE RIR) tenho este romance na cabeça, um livro infantil para crianças - que estou escrevendo com a Adriana - e esta Carta para Manaus que é o meu desabafo... mas por que tu ris? é sério...por falar nisso, posso deixar um recado aqui pra Adriana?
LORD. claro, claro, manda, vai.
ÍNDIO. Adriana é o seguinte, a Adriana é uma mulher ma-ra-vi-lho-sa... Adriana? um beijo pra você meu amor daqui a vinte anos. papai já morreu, viu? (risadas gerais) não, mais é sério...
LORD. qual é a tua impressão da morte?
ÍNDIO. (lembrando um de seus poemas) a morte paira sobre mim, sobre ti, sobre a paz/ paira faminta em Kinshasa/ as guerras nascem da morte/ a morte presa à capsula/ química e fulminante/ os abrigos nas montanhas contém vida e morte: coexistem, coabitam/ mas o que é a morte senão uma palavra insípida que aprendeste a temer? abraças do corpo a vida?/ é a morte que por detrás afagas/ a morte não é abstrata... arghh, apaga, apaga, apaga isso!!
LORD. a morte a morte a morte a morte a morte a morte a morte a morte... mas isso é lindo, cara!
ÍNDIO. cê acha, é? ah, Burguês, eu te amo!!
LORD. tu é muito querido também, meu chapa.
ÍNDIO. mesmo que eu te traia no futuro?
LORD. mesmo que me traias no futuro.
ÍNDIO. como Judas traiu Jesus?
LORD. como judas traiu Jesus, fazendo um bem imenso a humanidade.
ÍNDIO. brindemos, então!!
LORD. brindemos!!
INDIO. A Judas?
LORD. a Judas!
ÍNDIO. vou pedir mais uma cerveja á Maria Pinto, mas estou com pouca grana. cê paga a próxima?
LORD. pago sim.
ÍNDIO. é assim que se fala, cara.
(breve intervalo enquanto FraNZ troca a fita)
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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXVI

(CONTINUAÇÃO DA MESMA NOITE)

ÍNDIO. Madre de Dios, cara, eu nunca esqueço. ali corria um rio vermelho enlameado e eu fui ver, eu fui ver um cara morto com a cabeça enfiada na lama...
LORD. (impaciente) mas depois que foste expulso do ônibus, ficaste exatamente onde?
ÍNDIO. depois disso, saca, andei como uma bosta cambaleante pela estrada escura até chegar num vilarejo chamado Pomeral. lá conheci um Boliviano e um Mato Grossense, mas antes, né, o ônibus, bem...
LORD. (chupando seu queixo com a mão direita)
ÍNDIO. não tinha dinheiro, mas eu tinha uma calça roubada, uma calça quebra-mar, lembra as calças quebra-mar? naquela época a quebra-mar era bem cobiçada, só que a minha, que eu tinha roubada de um varal, era velha e tinha um rasgo no fundo, bem bem, era, bem bem, assim, rasgadona no fundo, mas tava nova porque eu tinha usado poucas vezes aquela calça, aí eu entrei no ônibus. aí então, o resto né, no meio da viagem eles chegaram pedindo o bilhete aí eu disse: “é o seguinte, vou pra Porto Velho, aí eu quero, eu quero, eu quero, somente ir, mas não tenho dinheiro, apenas uma calça de marca rasgada e uma vontade imensa de ir”. aí mostrei a marca da calça, eu lembro que ele anotou, ele anotou lá no, lá no bilhetinho assim, “tudo certo...”
LORD. e aí?
ÍNDIO. aí que me botaram pra fora.
LORD. Putz!!
ÍNDIO. (acompanhando a musiquinha: abençoar...)
LORD. muita coragem, né cara?
ÍNDIO. aí, né cara... (tosses) cigarro, Burguês, porra!!
LORD. ah, sim, cigarro...
ÍNDIO. cê tá muito bonito, cara, tu. veio de onde, cara, tu?
LORD. (falando como uma menina. ) de casa.
ÍNDIO. eu te curto pra caramba, sabia? se eu te trair no futuro, cê me perdoa?
LORD. bom...
ÍNDIO. bom?
LORD. eu não sei, caralho. talvez eu te perdoe, depende.
ÍNDIO. depende do quê?
LORD. do tipo de traição.
ÍNDIO. trair é trair.
LORD. se trair é somente trair, talvez eu não te perdoe.

há então esse vácuo sonoro

(& fim da gravação)
***

DELÍRIO DE FRANZ NA VOLTA PARA CASA

três da manhã. um homem correndo na chuva. uma sombra H2o. rá!! os holofotes dos taxis. este homem sou eu na madrugada e estou longe aproximadamente de casa. um taxi para. quando se entra curvo em um taxi num dia de chuva é como se faltasse uma metade de você. então você diz, boa noite motorista! me leva para um outro lugar. para o centro de qualquer lugar. seja gentil! estamos flutuando na mesma merda. bostas flutuadoras é o que somos. estamos sozinhos e doentes. você em seu carro, eu em meu cofre de delírios. me leve para onde não exista casa, família, lar, nada! ou simplesmente ficaremos aqui, só nós dois dentro desse seu carro rodando pela cidade vazia, que tal? ouviremos Rachmaninov - que eu adoro, já ouviu Rachmaninov? não se preocupe, eu pago a sua gasolina. eu não tenho pressa de nada. o senhor tem alguma pressa? quero ver os neons gotejantes da cidade. as árvores que dançam com os monges. homens fornicando sob as marquises. ligue o motor! gire as rodas! não ligue para minha insanidade. tudo na perfeita desordem. só siga e não pare enquanto eu mandar! atravessaremos Manaus, a névoa, o frio e a solidão. Oh noite triste! sou um desgraçado feliz. mas não importa quem eu seja agora. se trago comigo essa faca cravada em meu coração. sinto que devo apenas seguir. e me calar.
neste instante ouço de verdade o barulho da chuva arranhando com suas unhas negras o vidro do carro. seu apelo é sagrado. calma e selvagem. seu cheiro implacável de chuva. nesse momento meus dedos congelados de frio abrem as janelas para sentir o cheiro da chuva. seu sexo molhado de mulher-chuva. A CHUVA É MULHER. a chuva não tem passado, presente ou futuro. meus dedos, minhas armas, o que restará disso tudo é uma capsula, porque o amor... bom, o amor, a chuva tem uma vagina dourada. VA-GI-NA. sua visão é esplendorosa. com os dedos, ela abre sua fenda dourada e eu olho TODO O SEU INTERIOR. o interior de uma vagina de chuva. o senhor não vai acreditar no que estou vendo agora. a chuva se mostra por dentro. pare o carro, senhor! vou trepar com a chuva. pare o carro, já! estou mandando! vou lamber cada partícula cintilante que dela emana e mostrar para o mundo que estou vivo. vou penetrar a chuva!!

afinal, de um jeito ou outro, todo mundo busca o amor, não é isso?

terça-feira, 6 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXV

ÍNDIO. os mineiros eram lindos, cara. Romeu nem parecia um mineiro, o cara tinha os cabelos dourados e olhos claros, mas sua elegância era incomparável à elegância soberba de Napoleão. único que destoava deles ali era eu que ficava mais e mais com a pele gasta e maltratada do sol e das bebedeiras violentas. já a pele deles, permaneciam intactas.
LORD. Napoleão certamente usava óculos.
ÍNDIO. todos usavam óculos por causa de suas hipermetropias, e quando todos eles me olhavam de uma só vez nos finais de tarde no Bar Lacerda, eu via as raízes vivas do sol refletidas nas lentes de seus óculos e aquilo pra mim era extraordinariamente belo. nunca os vi sem os óculos.
LORD. mas me conta mais um pouco sobre eles, cara.
ÍNDIO. os mineiros sobretudo eram humanistas, até na hora de comer. olha só, cara, pra começar, o almoço deles era arroz, beterraba, cenoura e carne cozida. a janta deles era, sopa de arroz, cenoura, beterraba, eeee, berinjela... nos domingos era, era, purê de batata, arroz branco com cenoura picada e carne cozida. tudo coloridinho, saca?
LORD. chegou a morar com eles? cê morava num quarto alugado ali próximo deles?
ÍNDIO. (começando a ficar bêbado e chato) quarto alugado, han? ééééé, meu anjo, quarto alugado sim, agora deixa eu te dar um abraço, deixa...
LORD. só me conta, vai.
ÍNDIO. mas deixa eu te dá um abraço, cara...
(Indio abraçando calorosamente o Lord).
LORD. agora me conta, vai.
ÍNDIO. sim, sim, eu era vizinho dos mineiros numa pensão, sim, só depois é que fui morar nos fundos da casa onde funcionava o jornal, então eu não precisava mais pagar aluguel nenhum, os mineiros me pagavam um salário porque me tornei uma espécie de office boy deles e colaborador do jornal, além de me pagarem um extrazinho também porque eu ajudava na limpeza do prédio, e aquela foi a melhor fase da minha vida porque eu vi aquele jornal decolar e depois despencar assim, ó, num estalo, ó, assim sabe... então é o seguinte, como eu era o office-boy deles, o Leopoldo dizia: Sam, falta pagar aqui uma promissória, vá lá e pague esta promissória; ou então, Sam, falta comprar cigarros e os tabacos do Napoleão, vá lá e compre! ou então, Sam, falta descontar este cheque pro Romeu, vá lá e desconte este cheque pro Romeu. e eu COM OS PÉS alegres e descalços ganhava as ruas barrentas e ensolaradas do centrão de Porto Velho sorrindo pro sol e as pessoas ali me olhavam atravessadas porque ninguém gostava da intromissão dos mineiros no cotidiano da cidade, mas que na verdade, era o jornal que incomodava; eram as ideias dos mineiros que incomodava aquela gente subserviente ao Gerônimo Bengala que fazia uma politica de pão e circo igual, era... mais, saca, a parte melhor era quando eu entregava os jornais nas bancas ou quando eu atirava os jornais nos pátios das casas, era como atirar uma bomba na paz daquela gente toda... e era sempre uma notícia bombástica para derrubar o tal de Bengala. então em Porto Velho eu curti muito, cara.
LORD. os mineiros te ajudaram, cara...
ÍNDIO. sim, me ajudaram muito. mas eu queria te falar agora de Cuiabá, de Brasília...
LORD. mas antes, faz um retrospecto de Porto Velho, vai?
ÍNDIO. faço sim, mas por que tu sumiu, cara, hein? mas por que tu sumiu? deixa eu te dar um abraço...
LORD. compromissos, cara, compromissos...
ÍNDIO. (abraçando outra vez calorosamente o Lord.)
ÍNDIO. sabia que ando com saudades de ti, cara?
LORD. hannn... eu também... fala então de Cuiabá...
ÍNDIO. Cu-cu-Cuiabá? Bom, Burguês, Cuiabááá...eu morei em Cuiabá três meses... é, é, uma cidade escrota. muito barro e quente demais...mas o meu objetivo mesmo era São Paulo. só que, quando cheguei em Brasília eu me senti desamparado e só. senti medo de seguir viagem, e depois de dois dias de intensa bebedeira pelos bares adjacentes da rodoviária, havia gasto tudo e então resolvi voltar. mas como é que volta? me lembro que fui colocado pra fora do ônibus. mas, não sei se devo falar sobre isso hoje.
LORD. não, mais... cê acha que deve falar...?
ÍNDIO. bom...
LORD. que rolou?
ÍNDIO. no ônibus é o seguinte, né cara, cê entra, se aconchega, e só depois no estradão é que eles pedem o bilhete, e quando isso aconteceu eu estava entre Mato Grosso e Rondônia sentado nos fundos abraçado a uma garrafa de cachaça - posso dizer a marca?
LORD. foda-se!!
ÍNDIO. era uma garrafa de cachaça sessenta e um e eu estava abraçado desesperadamente a ela no meio de uma estrada escura. depois tu conserta, tá?
LORD. mas não tem conserto.
ÍNDIO. chorei, cara...olhei pros rostos frios dos passageiros pedindo alguma espécie de ajuda mas ninguém me disse nada porque uma hora dessas tu é mais um fodido. e então eu fui atirado entre a escuridão e a morte...
LORD. ah, fala sério...
ÍNDIO. cheguei a ver ainda uma caras frias rindo da janela, zombando da minha desgraça. mas pula isso aí, cara, eu tô ficando bêbado.
(aí ocorre uma interrupção da fita devido a embriaguez de ambos. depois de meia hora, a gravação recomeça. fraNZ tenta a todo custo entender como Sam retorna á Porto Velho. mas não que Sam insista em pular esta parte – na verdade até hoje, Sam nunca revelou a FraNZ como sobrevivera aquele episódio em que é jogado no abismo negro. o que fraNZ ouviu ele dizer é que, na vida da gente sempre existe uma lacuna, mas fraNZ não consegue engolir aquela estória, não.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXIV

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ÍNDIO. os mineiros eram guevaristas, cara. quando cheguei em Porto Velho, já tinha lido a metade do O Capital, do Marx, tinha lido muito sobre Cuba, sobre Fidel, Chê, mas ainda não tinha alguém que me levasse para uma ideia mais, mais, preponderantemente prática e aprofundada acerca das revoluções, saca? foi quando os mineiros apareceram na minha vida, lá em Porto Velho. aí eu comecei a enxergar tudo, saca? os mineiros eram jornalistas, intelectuais, e eles foram a minha âncora.
LORD. eles bebiam, fumavam muito?
ÍNDIO. bebiam sim, e fumavam muito também. alguns fumavam cigarros, charutos...Napoleão fumava cachimbo e usava cavanhaque. era o mais elegante deles. alto e elegante. o mais intelectual deles, era. este Napoleão já me manjava, e um dia ele e o Romeu (que era um outro mineiro), me vendo sujo e bêbado pelas ruas de Porto Velho, me chamaram e disseram: “por que tu gostas de viver assim?” “assim, como?” perguntei zangado, “assim, cara, sujo e duro?” e eu respondi, “eu sou índio, cara! eu sou índio, bicho! eu sou um manaó...” “senta e toma uma cerveja com a gente, então.” e assim começou tudo. eram educados, os caras, mas deixa eu te falar deste Napoleão especificamente porque era o mais legal e o mais culto dos três. quando cheguei lá em Porto Velho, Napoleão já tinha voltado de Minas com ideias de fundar um jornal, uma espécie de jornal de oposição na cidade, veja bem, ele e o Romeu. os mineiros, tipo, eram quatro: o Napoleão, o Alencar, o Leopoldo e o Romeu. todos elegantes e cheios de ideais. ficavam tipo, impressionados comigo. Leopoldo falava: “porra, cara, tu tens respostas pra tudo.” e eu falava sobre Porto Velho, sobre as ruas de chão de barro, sobre os prédios precários - caindo aos pedaços - sobre aquela gente sofrida e explorada porque eu estava há mais tempo que os mineiros lá e eu me sentia no direito de poder falar do chão de onde eu pisava, e um belo dia mostrei meus poemas ao Napoleão e ele e o Romeu me chamaram pra trabalhar com eles no jornal que pretendiam fundar ali, um jornal de oposição, saca? na época, deixa eu te dizer, na época, na época em Porto Velho reinava o governo do Bengala, Gerônimo Bengala, este cara foi o seguinte, foi um cara corrupto que desviou verba do governo federal pra comprar apartamentos em Ipanema e na avenida São João, né cara? então nós, nós, já com o jornal funcionando, fizemos um abaixo assinado pedindo a interdição dele, mas não teve muita repercussão porque a questão era forte, peixe grande, né cara, e ficamos nisso... sabe, hoje eu penso, Chê Guevara lutou pela liberdade, pela reforma agrária, sai dessa, Sam! é, eu, Burguês, cresci, saca? e hoje eu não tenho materialmente nada, apenas algumas ideias preâmbulosas...
LORD. mas eu quero saber um pouco dos mineiros, cara.
ÍNDIO. primordialmente, eu e os mineiros discutíamos a vida em todos os seus sentidos. só que, quando você discute a vida, você não discute apenas a questão de respirar, você discute a maneira de comer, de beber, de andar, de conviver, de morar, entendeu? O quê que se resume a isso? resume a você conviver, mas o que é conviver? conviver, deixa eu te dizer, conviver é... o estado psicológico e social de você estar na sociedade.
LORD. viver pacificamente, é isso?
ÍNDIO. não, não é isso, é outro passo. a questão é de você viver e de se relacionar socialmente, se é pacificamente, eu já não sei, entendeu? mas aí é o seguinte, aí vem a ramificação de tudo isso, de você viver uma vida pacificamente ou não. cê pode até matar ou morrer, mas é socialmente que você vive, é socialmente o ato de você contestar...
LORD. fico pensando nos mineiros ouvindo os teus delírios...
ÍNDIO. é Burguês, é verdade, é verdade, e Napoleão se assemelha muito a você, sabe, cara, um sujeito pacífico, intelectual, se assemelha muito a você...
LORD. hummmm
ÍNDIO. posso cuspir?
LORD. pode, pode.
ÍNDIO. porque eu acho que o cuspe pra mim é tudo, cara. quem não cospe, está morto. (Índio dando uma cusparada)
LORD. está morto, está morto. bela filosofia. mas fala um pouco mais dos mineiros, cara.
ÍNDIO. um dia como este já estávamos bebendo. bebíamos todos os dias depois que deixávamos o jornal. havia um bar logo de esquina, perto do Cine Lacerda onde enchíamos a cara e filosofávamos. eu me sentia importante no meio deles porque eles me deixavam pensar, e eu as vezes extrapolava e vomitava os meus delírios. aprendi numa tarde cruzar as pernas como o Napoleão e a gesticular freneticamente como o Alencar e como o Leopoldo, e assim eu fui me sentindo importante ali, no meio deles. no meio de um lugar esquecido e terrivelmente quente. foram os mineiros sem dúvida alguma que trouxeram um pouco de luz pra Porto Velho, e se hoje eu sou o pouco que sou, agradeço aos mineiros.
LORD. os mineiros...
ÍNDIO. era sempre Napoleão que dizia, quando os ânimos se exaltavam: Sam, você tem a palavra...
LORD. e você tinha a palavra sempre?
ÍNDIO. eu tinha a palavra naquele momento da minha vida. eu tinha a palavra. Sam tu acha isso? Sam tu acha aquilo? eu não acho isso, eu não acho aquilo, eu penso dessa maneira, agora cê imagina um índio tendo a palavra, eu tinha a palavra, e não achava, eu pensava sobre isso ou aquilo, saca? isso em oitenta e seis, a mais de dez anos atrás. os mineiros eram lindos, cara, e tinham uma pele macia, olhos claros e a mesma altura. andavam esguios e onipotentes pelas ruas poeirentas e ensolaradas de Porto Velho. pareciam deuses.
LORD. e o que eles faziam nesse cu de mundo, cara? o que eles buscavam, afinal?
ÍNDIO. o mesmo que eu buscava.
LORD. mas o quê?
ÍNDIO. sei lá!!
LORD. só.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXIII

(outra pausa. FraNZ queixando-se para as estrelas.)

LORD. sou um idiota, eu sei, mas sou um idiota jovem. tenho a pele clara e quando olho no espelho, eu vejo a imagem de um idiota jovem, não um velho de meia idade, eu então eu canto pra mim mesmo, e quando eu fico doido eu sinto que – minha boca tá muito seca mas não vou arruinar todo este instante mágico na terra com um gole de água, ai, ai, ai, ai, ai, e todo esse papo, eu meio que curto esse carinha e este seu medo de estar ficando velho que é um medo universal, e o meu medo é de não me sentir mais a altura da tarefa e ver minha inteligência se acabar porque eu já não me acho muito inteligente...

(GRAVADOR DISPARANDO SECO)

ÍNDIO. veja bem, eu não sou romancista como você, mas como já disse, me arrisco a escrever um romance chamado A Passarela dos Gatos.
LORD. PASSARELA DOS GATOS? interessante o título...
ÍNDIO. este livro, Burguês, é um livro sobre a corrupção e a psicologia humana. veja bem, não é ficção, é realidade. o mal dos escritores no Brasil é colocar bem assim, “ficção”, debaixo do título, como forma de se eximir da verdade. essa é a questão. eles se livram de qualquer contestação ou responsabilidade, ou melhor, se escondem atrás de uma palavra chamada “ficção” porque não querem responsabilidade com suas verdades.
LORD. achas errado essa postura, então?
ÍNDIO. mas é óbvio, cara! tu mesmo restringe o teu pensamento, tua maneira de pensar. tu tem medo porque no fundo tu és um católico, cristão, e todos vão te censurar, criticar, te achar um chato, como, como, como o, o, o, (Índio estalando os dedos impaciente) o, o , o...
LORD. poeta?
ÍNDIO. não, dramaturgo...
LORD. Brecht?
ÍNDIO. não, não, o dramaturgo grande do Brasil, o, o, o, do cafezinho...
LORD. Nelson Rodrigues?
ÍNDIO. sim, como Nelson Rodrigues fez, né cara. ele certo dia foi vaiado porque ele simplesmente mostrou a realidade com seus palavrões. na estreia de uma de suas peças, ele mesmo afirmou: minha obra de estreia – “perdoas por me traíres” - nunca teve dentro de seus trechos, palavrões, palavrões quem dizem são vocês, condenando as minhas peças, eu não. isso ele dizendo. por isso essa questão, cara: porque se esconder dentro de uma realidade que é sua, cara? dentro de um a realidade que é popular?
(musiquinha no fundo: brilha brilha brilha brilha brilha brilha brilha brilhááá)
LORD. então, este romance que estás escrevendo seria mesmo um, um...
ÍNDIO. A Passarela dos Gatos é um romance. nem comecei, não estou nem na metade, e não sei se terminarei, mas sei que será uma junção de acontecimentos, de fatos, de atos... a psicologia da realidade...
LORD. (coçando a cabeça bastante confuso) e a Carta para Manaus, cara? deixastes de lado?
ÍNDIO. não, não, não, falta, falta a janela primeiro. quando eu fizer a janela, essa janela aí mesmo!
LORD. ela vai te proporcionar o quê, esta janela?
ÍNDIO. eu vou poder abrir bem ali, ó, de madrugada eu vou poder abrir ela, ou melhor, poder abri-la e... poder olhar o horizonte, e só então escrever melhor a, a...
LORD. Carta Para Manaus?
ÍNDIO. Sim, A Carta para Manaus.
LORD. mas tá direcionado ainda, a, a, ao teu repúdio á cidade?
ÍNDIO. sem dúvida nenhuma! procede ainda a minha maneira de pensar essa cidade, nunca me eximi disso e você me conhece. eu, eu, eu particularmente, eu particularmente não suporto Manaus. Manaus éééé, no sentido social, ela éééé, algo assim, desestruturada, é algo assim, algo assim, irracional a ponto de, a ponto de, de sorver todo uma, todo um líquido ou então todo um material inorgânico que ela mesma não, não, não consegue expelir, entendeu? Manaus não consegue... esta cidade escrota, ridícula ela mesma não consegue se desfazer desse seu erro, de toda sua falha... eu não suporto essa cidade! eu vivo nessa cidade por questão... eu não sei se é uma questão de destino ou é por questão pessoal minha mesma, mas esta cidade simplesmente ela, ela, não tem a, a, proporção de definição como ela, ela, como posso dizer? como ela cria...mas não são essas as palavras, você me entende? é como se existisse uma falha geológica dentro da minha cabeça. mas sei que todo esse esquecimento, no fundo, eu sei que não é culpa do fumo, mas da cachaça.
LORD. mas eu acho que entendi, tipo, se você vivesse em outro lugar...
ÍNDIO. não, não, não é questão de outro lugar, Burguês, Manaus poderia até mesmo ser aprazível, poderia ser próspera é que ela, é que ela ééé tão mãe, que acaba sendo filha da mãe com seus filhos.
LORD. (rindo)
ÍNDIO. então é isso, cara...
LORD. mas ainda acho que há muitas lacunas nesta carta...
ÍNDIO. é claro, é claro que sim, por isso eu estou buscando mais coisas porque eu não quero ser superficial, eu quero ser bem profundo, entende?
LORD. e os mineiros, cara? queria que tu falasse dos mineiros. qual era o pensamento dos mineiros, bicho?

terça-feira, 23 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O LIVRO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXII

*GRAVANDO
LORD. aqui, dando continuidade ao, ao...

(barulho de um papel se desembrulhando)

o gato chinês:
o gato dormindo é um chinês acordado
o gato cochilando é um chinês sorrindo
o gato acordado é um chinês assustado
estão calmos e caminham em leves passos
gato se escreve com g
e chinês com ch
gato chinês.
mas ambos usam longos bigodes espetados...
LORD. que engraçadinho. de quem é isto?
ÍNDIO. é da minha filha, Adriana. só ela consegue traduzir a letra dela. diz ela que, de agora em diante só vai escrever poesia pra mim.
LORD. (em silêncio.)
ÍNDIO. (cantando) mas tudo passa, tudo passará...
LORD. cara, eu odeio Moacir Franco, mas tudo bem...
ÍNDIO. é, Burguês, eu caminhei de noite de madrugada nas matas da Bolívia, sabe que, sabe que é você começar uma caminhada deeee, de repente você achar que não vai chegar vivo do outro lado? então era isso, bicho, eu era louco, sabe, guevarista, Mao-Tsetungiano... lia Karl Marx, saca? mas estou deixando de acreditar em tudo...
LORD. como assim?
ÍNDIO. é que eu tinha respostas pra tudo. hoje não mais, não tenho respostas pra nada...
LORD. e por quê?
ÍNDIO. não sei, envelheci.
LORD. que nada! trinta anos, pô, vai envelhecer assim?
ÍNDIO. mas envelheci.
LORD. tu achas que aos trinta anos já encerrou um ciclo?
ÍNDIO. não, hoje sou ligado a poesia, só isso... embora me arrisque a escrever um romance, não tão bom quanto os seus, que és um romancista nato, imagina...
LORD. não sei se o que escrevo é bom. ás vezes soa confuso demais, como a minha vida.
ÍNDIO. como a de todos nós, mas olha, imagina, se você fizer uma análise de você mesmo de uns anos pra cá, você vai perceber que o teu trabalho está muito mais evolutivo, muito mais elaborado, agora eu não sou a pessoa certa pra falar sobre isso, acho bom você escolher uma outra pessoa. mas o que eu queria te dizer não era exatamente isso, era outra coisa, mas esqueci. ando esquecendo de dizer as coisas...
LORD. eu meio que te curto, te acho um cara jovial, embora tenha a pele escura e um rosto sofrido, o que te deixa de certa forma, velho, mas ainda és um cara jovem por dentro.
ÍNDIO. você quer me encorajar com essas palavras, e eu até agradeço, só que envelheci sentado aqui nesse quintal olhando as estrelas e cuidando das minhas plantas. não sei se você reparou, mas tenho me dedicado as plantas do meu quintal, e aguá-las todas as manhãs é um exercício fascinante, uma espécie de prazer excretório, mas sei lá, tudo faz parecer que estou ficando um velho idiota, isso sim.
LORD. não acho que isso seja coisa pra se preocupar...
ÍNDIO. talvez seja a crise dos trinta...
LORD. isso é bobagem que inventam. lembro que aos vinte eu achava o suicídio uma coisa linda e necessária; que aos vinte e poucos eu deveria me suicidar...
ÍNDIO. sério?
LORD. pô, achava romântico demais o cara morrer aos vinte e poucos...
ÍNDIO. como os poetas do mal do século, é verdade...
LORD. mas afinal, acabamos descobrindo que somos todos covardes mesmo, que esse é o século da covardia e do apego as coisas materiais...
ÍNDIO. às vezes sinto que, que me esforço demais, um esforço em vão, que não vou conseguir mais ir adiante com as coisas... que estou mais e mais mergulhando numa lama...
LORD. só. sinto ás vezes isso também. mas só as vezes...
(pausa)
ÍNDIO. mais um peguinha?
LORD. sim, sim, em homenagem as estrelas que nos assistem...
ÍNDIO. montamos um palco para elas assistirem os nossos dramas humanos...
LORD. (dando um pega e tossindo bastante.)
ÍNDIO. te falei que essa é da boa? vai devagar, porra!
LORD. (prendendo a fumaça e fazendo uma careta medonha) o curioso é que, sabe cara, é que a respeito dessa conversa toda é que eu acho que nós dois, saca, tu e eu, estamos nos contendo, apesar de chapados, o que eu tô dizendo é que, a gente fica se cuidando um do outro que nem bons amigos de verdade...
ÍNDIO. é isso aí, tá certo. agora fica aí fumando mais um pouco que eu volto já.
LORD. mas aonde tu vais?
ÍNDIO. vou logo ali.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇOES - PARTE XXI

BARULHO DE CADEIRAS SE ARRASTANDO. MUDANÇA DE ESPAÇO. A SOMBRA FRESCA DAS ONZE HORAS SOBRE OS HERÓIS.

NEGRO. mas é sério, ó, cara, cheguei assim pra diretora e disse: olhe, eles estão pegando no meu pé, me chamando de preguiçoso como chamavam os negros no passado, e eu sou um negro azul e o meu coração é fraterno, mas se a senhora quer que eu chegue e saia no mesmo horário deles, não tem problema algum porque eu tenho um compromisso com esta escola e faço o que manda esta engrenagem, E PROLOLÓ PROLOLÓ PROLOLÓ, com toda aquela carga de dramaticidade divina, saca, e ela então me disse, professor, não se preocupe com que os outros dizem ou pensam ao seu respeito, volte pra suas crianças e pra suas flautinhas...
LORD. e este caldinho que não sai, hein?


TERCEIRO ENCONTRO – BAIRRO DE PETRÓPOLIS. 1998.
O LORD E O INDIO. QUINTAL DE ESTRELAS

LORD. noite estrelada pra caralho...
ÍNDIO. foi o fumo, Burguês, esse é do bom...
LORD. (com voz arrastada servindo cerveja) ca-ra-lho...
Índio. afffffi...
LORD. (minutos depois) tu acha que ao chegar aos quarenta anos, assim, tu vai agir também... vai ter esse comportamento, essa maneira aberta de pensar sobre as drogas assim como tu pensas hoje?
ÍNDIO. não, cara, esse lance é muito complexo, é muito complexo. o que que é droga? o que que é vício? isso é muito complexo, muito complexo...
LORD. porque cê vê, né cara, esses programas de tv, tá cheio de pessoas que são entrevistadas diariamente dizendo o contrário do que elas querem dizer. veja, eu não estou aqui fazendo apologia às drogas, não é isso não, eu conheço pessoas que fumam, pessoas maravilhosas que eu tiro o chapéu, pessoas que, sabe, é que, essas pessoas que chegam a uma determinada fase da vida e que olham pra trás e dizem covardemente, fiz isso, fiz aquilo, mas hoje minha vida é outra e eu condeno tudo que fiz no passado. isso não soa hipocrisia demais?
ÍNDIO. mas a maconha não é droga, porra, droga é essa maconha transgênica que andam vendendo por aí...
LORD. mas ela é hoje combatida...
ÍNDIO. na Holanda a maconha é liberada, aliás, há pubs que oferecem maconhas de um-dois-três graus, a maconha ela é, é, ela não, não deve ser classificada como droga, droga é o ópio, o lsd, o ecstasy, a heroína...
LORD. mas se tu tivesse oportunidade de tomar lsd tu tomaria?
ÍNDIO. provaria, Burguês, provaria porque sou consumidor nato. fumei maconha aos treze, cheirei cocaína aos quinze, tomei eritoss aos dezessete, me injetei com gotanergan e tonopan aos dezoito, eee, foi, provei o ecstasy aos vinte, e sabe Burguês, eu fui um cara que convivi com as drogas, saca? e eu não vejo porque... é lógico se a minha filha tivesse envolvida com drogas assim como o lsd, como a própria maconha, eu digo, olha, se você fumar maconha, eu acho uma boa, porque a maconha quebra, ela quebra todo o ritual de caretice e de pragmatismo dessa sociedade careta e portanto eu acho natural ela vir a usar maconha, não vejo porque não, minha filha é atriz, cara, ela, ela é, atriz, a minha filha é atriz, daqui a um tempo ela vai estar com quinze e ela vai usar maconha, todos usarão se já não tiverem usando, e aí? eu acho que a maconha é o precursor de ideias, ela é, é, um símbolo...o nosso problema é que nós estamos envolvidos com uma gama de interlocutores caretas, formados por seus pais da geração de sessenta, aqueles mesmos que eram adeptos do, do, do, dictarismo...
LORD. ditadura.
ÍNDIO. ditadura, é, ditadura, em que tudo era horroroso, a minissaia era horrorosa, a palavra merda era horrorosa, a forma de se sentar era horrorosa, entãooooo, entende, não tem nenhuma... assim... como posso dizer, uma critica contra eles porque eles estão velhos, daqui há pouco eles passam e aí nós entramos...
LORD. mas não ficou nenhum ressentimento aí, não? nenhum arrependimento?
ÍNDIO. não, não me arrependo de nada, não, agora tenho muito o que lastimar, né cara, como estava dizendo pra ti antes em algum outro momento em que sentamos juntos como agora, é que, já sofri muito, sofri coisas que, esses moleques da minha rua, do meu bairro não vou sofrer, não vão sofrer... eu sofri muito cara, um cara como eu que conviveu com a escuridão das estradas, mergulhado no breu, dependendo de uma carona pra chegar em outra capital, em outra cidade, tu e tua sombra num tempo que não é mais aquele em que pegar a estrada era motivo de algum sentido universal, e agora não há mais nada e tu não sabe como tu foi parar ali, naquela estrada, e tu é tua sombra seguindo em frente sempre sem um centavo pra comprar um pão, entendeu? e aí tu tem que trabalhar pra comprar um pão, e eu digo, é ruim, cara, mas é um aprendizado, saca, mas que eu não desejo pra ti isso, sabe, tipo, vai, participa, seja assim, seja assado, não, eu não desejo isso aí não, claro, se você pegar uma mochila nas costas pra sair pelo mundo isso é um problema que é só seu e eu fico daqui da minha varanda torcendo para que você tenha pego a estrada certa e saiba voltar porque um dia todos nós voltamos para o mesmo ponto...

FRANZ DEPOIS DE UM TEMPO OLHANDO COM PROFUNDIDADE AS ESTRELAS

e eu te digo isso porque a palavra dele é um tempero...

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XX

HIPPIE. não, não, não dá pra viver engaiolado muito tempo num trampo, não.
ÍNDIO. quanto tempo tu trabalhou naquela Biblioteca?
HIPPIE. moleque, trampei um ano e meio naquilo lá. a biblioteca abria oito horas da manhã e eu chegava lá as seis. mas no fundo, gostava de lá. nas minhas horas vagas, vivia lendo, enfurnado ali dentro, tipo, lia pra esquecer a miséria que eu ganhava. os caras pagam muito mal seus funcionários.
ÍNDIO. mas fico pensando aqui que, apesar de bem remunerado, tem muita gente frustrada com seu trabalho, afim de chutar o balde mesmo, afim de cair fora, saca?
HIPPIE. olha aí o Zeca, ganhando dinheiro e fazendo o que gosta, e isso é um privilégio de poucos, cara...
NEGRO. mas aí tem que ver o seguinte, o espaço quem conquista é quem procura. por exemplo, o Jander é livre, trabalha muito bem com artesanato, e já tem uma cara, saca? o cara é super dedicado no que faz...
HIPPIE. sempre fui, cara, tudo e em qualquer coisa que eu faço.
ÍNDIO. isso tá parecendo aquele papo capitalista que diz, “não espere que a porta abra pra você, abra você mesmo a porta”, cê não acha, não, Zeca?
NEGRO. não, não, cara, acho que é a leitura da vida mesmo, saca? vamos imaginar que o Jander entende e sabe muito trabalhar com alimentos e com bar, e isto é fato, o cara é um exímio cozinheiro e já trabalhou com bar, quem não conhece o poeta, né cara? e este bar ou restaurante do Jander, ele não seria o privilégio de um conjunto de drogados e não seria também o privilégio de um conjunto de intelectuais, então ele teria o prazer de receber a,b,x,z e estaria fazendo aquilo que ele gosta, porra, esse cara trabalha com comida muito bem, cara, o cara cozinha pra caralho, o cara faz um arroz que não precisa de mais nada, então ele é livre pra ser feliz, e é sério, se ele tivesse hoje a condição de ter um espaço e regasse bem esse barato, seria do caralho, tá entendendo? seria do caralho, e se fosse por exemplo numa estrada, num sítio, onde o ambiente propiciaria a ele a criação, e é claro que tudo isso também tem algumas coisas envolvidas, acho que vocês conhecem, o prazer ele não se dá... por exemplo, eu entro oito e... um dia desses eu tava falando e eu tenho medo de falar isso e cair no campo da arrogância, sabe, cara, porque meus companheiros todos entram sete e todos saem as duas, TODOS OS MEUS COMPANHEIROS DO TRABALHO ENTRAM SETE E SAEM DUAS, intermediários e matutinos, mas eu entro as oito...
HIPPIE (cantando distraído e distante no fundo: tanto amor e tanta paixão...)
NEGRO. às treze e ponto eu tô liberado, mas meus companheiros ficam, todos meus companheiros trabalham dentro de uma sala de aula muito bem trabalhada, muito bem aconchegada, com ar condicionado, com painéis coloridos de todos os lados, e eu trabalho emparedado numa garagem, minha sala é uma garagem, parede aqui, parede aqui, e aqui uma, uma, um... portão de ferro, meus alunos eles podem entrar e sair a hora que eles quiserem, eles podem inclusive cada um pegar uma flauta e apitar na frente da sala daquela professora que tá dando aquela aula de matemática que é um saco onde só entra quem fizer silencio, eles tem a liberdade pra isso... mas já fiz um horário, estou de oito às onze, mas no ano passado eu entrava as sete, saía as dez e meia, ia pra faculdade, voltava sete horas e tinha que sair dez e meia e chegava uma hora da manhã em casa, assim que tava minha vida, um círculo servicioso, mas haviam as flautas e o brilho nos olhos daquelas crianças feitas de barro, poeira e asfalto duro...
ÍNDIO. vamo lá pra trás, vamo lá pra trás que o sol bateu.
LORD. e bateu mesmo, ô, esse lado meu aqui começou a doirar...
ÍNDIO. ummm, doirar...
NEGRO. sei que tô enchendo o saco de vocês, mas escutem, era assim assado que tava a minha vida a um tempo atrás...
LORD. e o que tu faz nessa escola mesmo? música? teatro? dá aula de que mesmo, Zeca?
NEGRO. eu tô com projeto, Burguês, não estou mais com com com, nada além, eu estou com um projeto de música, mas trabalhar música não como necessidade educacional, mas trabalhar música como lúdico, trabalhar música pra resgatar o menino da marginalidade e, e, e este projeto ganhou asas, e é do interesse da escola onde trabalho que este projeto ganhe asas, porque, por exemplo, semana que vem, a gente vai pra, pro... pra aquele hotel dos bacanas na estrada da Ponta Negra, Tropical, é, Hotel Tropical, onde eu vou apresentar um concerto de flautas com os meninos da periferia do último bairro de Manaus, saca? sabe, tem uma hora que eu adoraria, sabe, que você tivesse lá comigo, Burguês, trabalhando do meu lado, porque os outros professores me chamam de preguiçoso, que eu sou preguiçoso, cara, que eu sou um puxa saco e eu cai na merda de me efetivar, porque sou eu que me efetivo e não eles, você próprio me disse que sou autossuficiente e eu demorei pra digerir isso, mas acho que no fundo eu sou...
LORD. (dizendo com malemolência) sempre fostes Zeca, um cara autossuficiente, agora vamos sair do sol, ele me doira a pele.
INDIO. ummm... me doira a pele, agora pareceu o veado do Caetano cantando gosto de te ver ao sol, leãozinho, caminhando sob o sol...

terça-feira, 9 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XIX

ÍNDIO. quem tem um real aí pra comprar o cheiro verde e a pimenta?
NEGRO. o Burguês, ele sempre tem um real... o Burguês é assim mais eu entendo, daqui a pouco ele vai virar o bolso dele e vai aparecer uma nota de cinquenta.
HIPPIE. ainda mais que ele gosta de beber muito...
NEGRO. viiiixiiii...
LORD. bebo mesmo. lá na minha turma a moçada fica impressionada comigo, fuma e bebe professor? fuma e bebe professor? cara, fumo e bebo meeermo...
NEGRO (retirando um livro da bolsa e oferecendo a esposa do Índio.) olha, é pra filha de vocês.
ÍNDIO. nooosaa. Ana Clara Machado...
NEGRO. Ana Clara Machado, é.
ÍNDIO. pô, ela vai adorar.
NEGRO. lembra Jander que eu fiz o pluft?
HIPPIE. pô até perdi as contas.
NEGRO. Cara fiz tanto o pluft, fiz o pluft e fiz a bruxinha que era boa, e fizzzzz...
LORD. aí uma professora retardada vira pra mim e diz: assim professor, bebendo e fumando desse jeito, o senhor vai mais rápido pro céu.” “ah, não”, eu disse, “não quero ir pro céu, não, eu prefiro ir pro inferno...”
NEGRO. não tá servindo mais aqui vai pro céu, ah, que chato, cara...
LORD. deve ser um saco o céu.
HIPPIE. lembro que foi numa época quando a televisão prestava, é, passava aquele programa, além da imaginação, lembram? cara, aí passou uma vez um episódio baseado no texto do Hemingway, um conto dele, ó, cara, muito louco, muito louco muito louco esse do Hemingway, era um ladrão, a história de um ladrão, ó cara, e o cara assaltava, pá, fazia altos roubos e pá, e um dia ele assaltou um banco e quando ele foi pular o muro o policial, pou, deu um tiro nele e ele caiu do outro lado do muro, morto, né? aí já saiu a alma dele assim do corpo e tal né? aquele efeito preto e branco e tal aí veio um velho barbudão assim todo vestido de branco veio vindo assim na direção dele né, parou e disse: “meu amigo, você morreu!”, “porra, eu morri e tal, é?”, “você morreu e agora vai ter que vir comigo”, “mas pra onde é que você vai me levar?” “pra um lugar legal.” aí o ladrão vai e aí o cara chega assim tipo numa cidade, aí o velho fala pra ele: “ó, isso aí é tudo seu, cê pode fazer o que quiser.” “tudo é meu, tal?” “tudo é seu, você pode pegar as prostitutas, beber, se divertir.” aí o cara, pá, vai pro cassino, joga, bebe, come da melhor comida, se cerca das melhores mulheres, e aí o cara vai ficando entediado, ficando entediado, ficando entediado porque o cara era acostumado a roubar, né? aí ele pega lá uma prostituta e pergunta pra ela: “escuta minha filha, aqui não tem nem um banco pra assaltar, não?” “ih cara”, ela diz pra ele, “não existe isso aqui não, tudo aqui é seu.” e aí ele vai ficando entediado vai ficando entediado vai ficando entediado, até que chega o velho com ele outra vez e ele então reclama: “pô velho, é o seguinte, isso aqui tá muito legal, ganhei muito dinheiro no Cassino, as mulheres estão todas comigo, bebo do melhor whisky, só que pô, eu tô afim de um banco pra roubar, eu quero ação, quero ação.”, aí o velho diz: “rapá, não tem isso aqui não.” aí ele falou: “então eu quero ir pra outro lugar, eu quero ir pra lá, o senhor tá entendendo? quero um pouco de ação, quero ir pra lá, pro inferno, o senhor tá entendendo?” aí o velho diz: “pois o senhor está no inferno, tá entendendo? e o senhor não vai ter como sair daqui não, o senhor tá no inferno!” e acaba o cara saltando um grito desesperador ajoelhando-se aos pés do velho implorando pra ir pro inferno, saca?
LORD. isso é mesmo do Hemingway ou um roteiro maluco da tua cabeça?
HIPPIE. pode crer, é do Hemingway. Ernest Hemingway. o carinha lá dos sinos. o que estourou os próprios miolos.
NEGRO. cara, me fez lembrar a estória do urubu do Veropeso, a mesma parada, o Jander conta melhor essa estória.
HIPPIE: acho melhor tu contar.
NEGRO. ok, ok, parece que é o seguinte, tinha um urubu e ele vivia em um mercado, um mercado municipal lá de Belém, o mercado de Veropeso. assim, né, se tu jogasse pedra assim pra cima o urubu comia, né? ele gostava, vivia no furdunço mesmo, né cara, porra, levava uma vida desgraçada esse urubu, ainda tinha as pedradas que ele sofria dos moleques, mas esse urubu ia sobrevivendo estranhamente bem. aí teve um dia que um primo dele veio lá da bahia... como é o nome daquela baia que fica na frente da cidade de Belém? Bahia de... como é, Burguês, o nome daquela baía...?
LORD. não vou nem arriscar...
NEGRO. porra, cara, tem uma baía, uma baía, uma baía...
LORD. uma baía qualquer, Zeca.
NEGRO. tá, uma baía qualquer onde tudo era fartura né mermão. aí chegou esse primo de lá, um primo muito bem alimentado, todo no linho, apresentável, e, se sensibilizando com a miséria do outro, convidou este parente a passar uns dias lá na baía com ele: “vamo pra baía, primo? lá cê vai passar bem.” “então vamo!”, concordou o outro. chegando lá, no primeiro dia, o visitante começou a dar uns borros, ele foi logo chamando a atenção das urubuas, né cara, ele toda hora querendo ficar com as meninas e tá, no segundo dia muito jaraqui pra ele comer, muito peixe, tudo cara, tudo era dele que nem o ladrão de banco do Hemingway, depois, o primo bateu asa e voou, voltou dias depois e deu com o primo deitadão no tronco de uma árvore, muito estranho: “porra primo, cê não parece bem de saúde, que houve?” “não, aqui é bom, essa baía é boa, as meninas são boas, tá ligado? mas não tá tudo bem não, porque... eu gosto mesmo é do mercadão, gosto mesmo e da putaria, de tá levando pedrada, não tô legal aqui não... e naquele mesmo dia, ele bateu asas e voou, retornando feliz da vida, para o mercadão do Veropeso.” e é nesse sentido que o homem é um urubu universal, olha o Jander, por exemplo, o cara é inconstante, esse lance de tá trabalhando todo todo todo numa xerox ou atrás de um balcão de restaurante ali todo alinhado, todo quietinho não é muito do Jander, não...

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE VIII

NEGRO. um brinde, caralho. (sons de copos estalando)
HIPPIE. pois é, quando eu trabalhava na xerox da biblioteca do estado, a gerente sempre me via com esse bicho conversando, aí um dia a gerente chegou e disse: “tem um cara mal encarado com aparência de índio que vem aqui e rouba uns livros, conhece esse rapaz? porque sempre vejo você de conversinha com ele”. “não senhora, mas olhe, ele tem cara de que não presta mesmo”, eu disse.
ÍNDIO. eu lá nesse dia, né, ia pegar um livro do Drummond, autobiografia do Drummond, né, cara, e o Jander sempre facilitava as coisas pra mim, mas eu devolvia os livros, devolvia sim, mas confesso que já roubei alguns. então eu lá dando uma olhada nos livros na prateleira, cabeça baixa lendo a “Poética do Genocídio”, aí notei que essa senhora olhava pra mim do balcão e não era um olhar amigável, não.
HIPPIE. A poética do Genocídio, cara, muito doido esse livro, o cara dá porrada em Machado, no Alencar, no Guarani, ele dá-lhe porrada, dá-lhe porrada mesmo.
ÍNDIO. só que eu não queria exatamente aquele livro e eu expliquei pra ela e ela disse impaciente: “menino, então se decide, as pessoas quando vem á biblioteca já tem que ter o livro na cabeça”. “mas minha senhora – disse pra ela - eu tenho o livro na cabeça o problema é que não tem aqui, aí eu tenho que me virar com outro, não posso sair daqui de mãos abanando, sou viciado em livros.” aí ela foi lá trocar e voltou com o “Capital” do Karl Marx, beleza, só que tudo em espanhol. “minha senhora eu não falo em Espanhol.” eu disse pra ela, aumentando mais a sua raiva, seu ódio, sei lá o quê ela tinha de mim.
NEGRO. uma vez eu tava lá naquela Biblioteca e era um tempo assim que ninguém me dava livros, eu levava meu contracheque na, na, na... ninguém me dava livros, vivia enfurnado naquela biblioteca lendo e namorando há dias A perda do significado da vida e da liberdade, do Weber, e eu queria porque queria aquele livro pra mim de qualquer maneira, portanto fiquei a tarde inteira arquitetando um plano, mas bem, o livro nesse instante o livro já era meu, botei na cabeça que o livro já era meu, mas a porra é que eu tava sem bolsa e o livro não dava pra esconder na camisa, não dava pra botar em lugar nenhum, como é que eu vou fazer? me perguntava olhando pra aquele imenso relojão antigo tiquetaqueando na parede, se aproximando das cinco que é a hora que o prédio fecha, aí eu aproveitei o descuido do cara no balcão e encarei um maluco sentado bem ao lado de uma porta aberta e aí eu disse baixinho: “meu amigo, olha, vou tirar a xerox desse livro aqui na frente, tenho autorização.” e ele não disse nada. moleque, quando eu desci aquelas escadas correndo e atravessei aquela porta já alcançando a praça Heliodoro, a sensação que tive é que eu estava entrando no paraíso. mais adiante, fora do perigo, e respirando com alívio, disse pra mim mesmo: “porra cara, roubei a biblioteca.” eu tinha nas mãos, saca, o livro que me faria entender que nem a ciência e nem a filosofia e nem a religião poderiam dar um sentido a existência. um livro dessa grossura aqui, olha que maluco cara, tudo de que eu precisava pra conviver com os meus paradoxos, e isso eu não chamo de roubo, não, eu chamo de apropriação intelectual, por isso, não tenha nunca medo de afirmar que você algum dia já roubou um livro de uma biblioteca qualquer porque você não cometeu crime algum, só se for crime contra a intelectualidade alheia o que supostamente não existe nesse país.
HIPPIE. posso tirar minha blusa, cara?
ÍNDIO. tira, porra!
NEGRO. só não consegui roubar um que eu vi na faculdade, outra paixão minha, A Origem dos Mitos, um tijolão, cara, eu tu sabe que tô trabalhando com cultura, música, teatro e tal, essa coisa do mito mesmo, Burguês, eu tô olhando o mito com muita alegria porque o mito éééé, ele invade todas as penínsulas, todos os territórios, onde há um ser humano há um mito, e se vulgarizou o lance do mito porque parece que o mito é Michael Jackson, é Madona e o mito não é isso, inclusive a história do hebraico cristão é um mito, toda essa cristandade ocidental ela é um mito, toda crença, tudo tudo tudo é mito cara, e tem o mito mais recente que é confundido com a mentira, aí eu tô querendo trabalhar em cima disso, da desmistificação da da da, do teatro e da, da, da poesia, e da, porque parece que quem faz poesia é só o poeta, logo outra pessoa não pode fazer poesia, quem faz teatro éééé, são grupos específicos, quem faz música é músico...
ÍNDIO. e também concretizaram a poesia, né, a poesia parece que teve só um rumo e só uma origem, quando ela se estabelece como um trabalho onde haja uma beleza, né, uma sensibilidade e tá alcance de todos...
NEGRO. lembras, Jander, de um poema que uma vez ficaste lendo bem alto lá no Fecani que era bem assim, a poesia na flor no beija flor no elevador, aí depois desse dia eu comecei a olhar a poesia desse jeito, né cara, como um beija flor.
LORD. foi na vez que cê tava deitado assim no banco da praça e o Jander lá no púlpito declamando?
NEGRO. sim, eu tava lá morrendo de fome enquanto ele declamava, e esse cara conseguiu nesse dia descolar grana pra comida e uma namorada, tu lembras, Jander? A garota era filha de pescador e quando chegamos Jander e eu na casa dela, ela disse: “tem pacu frito ali!” aí eu disse: “poxa, não me mostra pacu não.” morto de fome, né cara, eu dividi, peguei a parte da cabeça que eu mais gosto, e o Jander ficou com o rabo, ela pegou um paneiro de farinha que tinha assim do lado e colocamos assim, muito tucupi né moleque, tem que ter tucupi no peixe, e comemos cara, comemos muito e quando eu tô dando a última colheirada no último caroço de farinha chega o pai dela do rio trazendo assim mais ou menos por baixo, uns seis tambaquis, né cara, uns seis tambaquis, e ela disse: “ai, meu Deus, o papai trouxe mais peixe, vamos comer!” aí eu disse: “não, eu tô bem, obrigado.” o Jander olhando pra mim com um olhão como se dissesse, “mas eu não tô cheio, não, quem foi que disse? aí ela preparou o tambaqui, mo-le-que, assim numa rapidez vap vap vap e botou pra fritar fritou fritou fritou e o Jander e o pai dela moleque dando pau e eu não aguentava mais e me escorei e botei pra contar causo né cara pra disfarçar porque já não aguentava mais de tanto comer peixe e fiquei sendo a gracinha da casa, né. a gente passava o dia inteiro com o Borboletras debaixo do braço no Fecani vendendo e enchendo a cara de cerveja, Borboletras na mão e cerveja na outra, e á noite, cambaleantes, noiados e com fome, a gente batia na porta da casa da figura pra comer peixe...
ÍNDIO. cara, que fim levou o Borboletras, hein cara? ainda tenho uma cópia do ¼ fechado...
NEGRO. não, esse livro quem tiver, ó, cara, me apresenta que eu quero ter a cópia, porque sou eu que faço a apresentação desse material e um dia eu queria reunir todas as coisas que eu faço.
ÍNDIO. privilegiado quem tem, né?
(voz da mulher do Índio no fundo: vocês querem peixe assado ou cozido?)
ÍNDIO. assado, assadinho, né gente?
NEGRO. cara...
LORD. foi jaraqui que cês compraram foi?
ÍNDIO. não, isso é curimatã, Burguês.
LORD. Curimatá, curimatá, né?
NEGRO. é, Burguês, é curimatá, sim.
ÍNDIO. o engraçado foi que o Burguês apontou pro mastruz e perguntou, que é isso aqui? eu respondi, é urtiga, caralho... (Gargalhadas)
NEGRO. o Burguês tá é dando uma de cu doce porque quando você vai pra casa dos outros você geralmente tenta esconder quem você é... cê assume outro personagem.
LORD. sério, cara?
NEGRO. dia desses lá em casa encarnou um personagem no Burguês e ele disse: olha, gente, cada um aqui tem sua identidade pessoal.
LORD. cozidinho não é melhor? o caldinho, cara, o caldinho quente, uma dilícia...
ESPOSA DO ÍNDIO. (cês é quem sabem...)
ÍNDIO. que que cês acham? cozido ou assado?
HIPPIE. cozido logo, tem o caldinho do Burguês...