domingo, 31 de janeiro de 2010

A CCOLONIA - PARTE IX


31° ddia dde ffevereiro
domingo 11:30mm

Oo qque mmais mme ppreocupa meu qquerido Aagaton, nnão éé oo ffato dde tterem ddescoberto que aando eescrevendo uum EEMBRIOENSAIO aacerca ddo “Ccullíneo – Oo rreto qque nnos cconduzirá àà ffraternidade ee aa ccompreensão hhumana.” mmas aas pparticularidades ee ppotencialidades nnele eexpostas. Aalém ddo que, éé cclaro, eexiste uuma ooutra MMONORRAZÃO que éé eesta mminha ggravidez RRANDÔMICA. Dde mmodo qque aao eentardecer ddeste ddia ffui llevado àà ppresença dde uuma ttal dde Lleilah, aa Ggestora-Mmor ddeste ccomplexo uuterino. Ffui tter ccom eela nna ssala de TTEMPERANÇA && TTOLERANCIA FFEMININA, llocalizado nna pparte ssuperior mmais aalta ddesta GGEOSTAÇÃO. Vvi-me eenvolto àà ccontra-gosto eem uum ccômodo ppequeno mmergulhado eem uuma ssemi-luz dde ttom nneônico ee ttemperatura gglacial eestável. Fflores cclogênicas ssemelhantes ààs Rosáceas ((hhá mmuito ttempo eextintas)) oornavam ttodo oo aambiente, eespalhando eem dderredor uum aaroma aamniotizado dde ccélulas eestaminais. Mminha aalgoz tinha um rosto angular pré-moldado e um olhar duro e frio enquanto examinava iirritantemente uma pilha de papéis holográficos ssobre ssua mmesa, ccujo uum EENTREBELADOR, pposicionava-se bbem aao ccentro. Aatravés ddas vvidraças dde mmonocristais iinorgânicos, vvi oo eespetáculo ttristonho dde uum ssol eesvanecendo ccom ttodo sseu eesplendor, llembrando-mme uum iimenso ggirassol vvermelho mmorrendo eenvenenado. Ddava ppara vver ddali ttambém oos ccanais dde iirrigação dde Ccrotón ee ppor ddetrás, seus ddutos dde ssolidão. Ppensei então, “aa vvida éé mmesmo uuma artificialidade.” Mmas ssegue aabaixo, qquerido Aagaton, oos ddetalhes ppor iinteiro dde mminha eentrevista ccom Lleilah, aa eentão ggestora-mmor ddesta GGEOSTAÇÃO. Eentrevista aa qqual rroubou-mme uum ggrande ee pprecioso ttempo, qquando ppoderia estar ttrabalhando eem mmeu EEMBRIOENSAIO.

Amor,
Ssmirnoff

sábado, 30 de janeiro de 2010

AA CCOLONIA - PARTE VIII


30° ddia dde ffevereiro
ssábado 14:37mm

Qquerido Aagaton, hhoje nnasceu uuma eespinha aazul bbem aabaixo dde mmeu qqueixo longo. Mmas iisso éé ssó uum ddetalhe ppormenorizado. Oo qque aainda cconcerne àà eevolução bbiológica dde nnossa eespécie, aasseguro-llhe qque ddentro dde ppouco ttempo, nnão mmais nnos ssubmeteremos aaos ttratamentos ddolorosos ee hhumilhantes dda HHORMONOFFÊMEA, ggraças aa ddescoberta ee oo aavanço dda CCELEUGENIA, ccapaz dde pproduzir oo NNEOESTROGÊNIO nno iinterior dde nnossos ttestículos, oo qque vvale ddizer qque eem bbreve sseremos ccapazes dde lliberarmos aa nnossa pprópria HHORMONOFFÊMEA, oou mmelhor ddizendo, aa nnossa HHORMONOPATER. Éé ssem ddúvida mmais uum ggrande ffeito ccomo ffoi no passado aa eesterilização ddas oorlas eempoeiradas dde Mmarte, aa cconquista ddo CIINTURÃO DDE OOZIRIS, aas vviagens TTEMPO-EESPAÇO aatravés ddos TTUBOS DDE FFALÓPIO, ee aa ccura ddefinitiva ppara oo ccâncer dda PPROSTAGÊNESE. Éé ppossível ppredizermos qque aa ffronteira bbiológica sse eestenda áá ooutras rregiões iinexploradas dde nosso ccirculo eesférico oorbital.
Oo ffuturo éé oo ppresente. Ssomos uum ccorpo eem eexpansão, ee nnão ssão mmais oos oobsoletismos ddas convenções mmatriarcais ffossilizadas qque iirão cconter aa ddilatação ddesse ccorpo...

Ccom aamor,
Ssmirnoff

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

AA CCOLONIA - PARTE VII



Eelas sservem ppolenta lliofilizadas nno aalmoço, ee ccaldo de ggalinha cclogênicas nno jjantar. Ffala ssério.

Uum ddia eenfadonhamente ccinza...

com amor,
Ssmirnoff

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

AA CCOLONIA - PARTE VI


28° ddia dde ffevereiro
qquinta 11:49mm

Qquerido Aagaton, nnão hhá mmais ccomo ddisfarçar mminha ggravidez, pposto qque eela eevolui RRANDOMICAMENTE ee ccreio eu qque eelas jjá ddesconfiam. Ssinto iisso pporque ccomeçam aa bboicotar-mme aaos ppoucos aas ddosagens aaltas dda HHORMONOFFÊMEA, ee ddesconfio ttambém dde uuma ppossível aalteração eem sseu CCHM3, cconquanto mminhas ccólicas ssão SSUPRARRENAIS. Quanto àà ccriança, eela sse ddesenvolve bbem. Ddurmo oouvindo oos bbatimentos ssonoros dde sseu ppequeno mmusculozinho aacoplado eem sseu ppeito. Aah, aa ggravidez, aamado Aagaton, éé rrealmente uum mmilagre hhumano. Eem ppensar qque ttodo eesse ttempo eelas ffizeram ddesse aacontecimento uum mmelodrama, ddigno dde uuma nnovela AAFROHINDU. Mmas cconseguimos rreverter ttudo iisso, nnão éé mmesmo qquerido?

Sseu,
Ssmirnoff

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

AA CCOLONIA - PARTE V


quarta 27° ddia dde ffevereiro
13:50mm

Aamado Aagaton, ttenho bboas ee mmás nnotícias: eestou ggrávido ee ttemo aagora ppor mminha iintegridade ffísica ee mmental, hhaja vvista, oo qque ffizeram ccom oo pprisioneiro Aalcebiades, (hhá ddois qquadrantes ddaqui), qquando ddescoberto aa ssua ggravidez. Rrestringiram-llhe ooitenta pporcento aas aaltas ddosagens nnecessárias daa HHORMONOFFÊMEA ee oo iinduziram aao AABORTOARBITRIO. Oos bbaixos ppadrões dde MMONODECÊNCIA nno ttocante aao ttratamento lleviano ppara cconosco, aadvindo ddessas pseudo-eespécies, eenregela mminhas EEMBRIOCÉLULAS. Ffui ttomado ppor uuma aangústia ttal qque. aao vver-mme ttambém aameaçado, ccogitei aa ppossiblidade dde aaderir ààs CCÉLULAS-SSUICIDAS-IINTRAVENAIS, mmas aacabei ppor iintroduzir ((nna mmadrugada dde oontem)) oo mmeu ppênis ee aas bbolas eescrotais ttodas ppara ddentro ddas ccavidades uuterinas dde mminha ggarganta com oo ppropósito úúnico dde ssuicidar-mme, ccontudo, ssucedeu-me áá MMONORRAZÃO-CCULÍNEA qque eeu eestaria ccometendo uum aato ffalho ee ccovarde. Oo qque mme rresta, pportanto, éé sser fforte ee ttentar ssobreviver, aalém ddo qque aamado Aagaton, oo FFRUTO-EESPÉCIE qque aacoplo ccalorosamente eem mmeu BBOLSÃO-AABDOMÊN, éé sseu

Ccom aamor,
Ssmirnoff

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

AA CCOLONIA - PARTE IV


26° ddia dde mmarço
tterça-ffeira-12:00mm

Aamado Aagaton, ttenho ttrabalhado rrecluso eem uum EEMBRIOENSAIO aacerca ddaquela aantiga iidéia ssobre oo “Cculíneo – Oo rreto qque nnos cconduzirá àà ffraternidade ee aa ccompreensão dda rraça hhumana”, llembras?? Oobviamente uum ttrabalho aambicioso oo qqual ttenho mme ddebruçado eexaustivamente ssobre eele ccom aa ccerteza dde qque eeste “ttratado” ((vvamos aalcunhá-llo aassim)) sserá eentendido ee aaceito ppela ppresente ee ffutura ccomunidade dde CCIENTIMENTAIS. Aafinal, ccumpre llembrar qque eeliminamos nno ppassado AAQUELE qque ffoi oo eelemento pproveniente ddo mmedo, dda rrefração ee daa ccondição mmiseravelmente ssubserviente ddo hhomem, ppara qque ssó aassim ppudéssemos aatingir uum ggrau eelevado dde mmanifestação MMONORRACIONAL ee ssuas rrelações dde eequilíbrio ee rrepouso eeterno. Eequilíbrio ee rrepouso eeterno: eeis aa bbase GGESTACIONAL dde mmeu EEMBRIOENSAIO ssobre oo “Ccculíneo – Oo rreto qque nnos cconduzirá àà ffraternidade ee aa ccompreensão hhumana”.
Aah, mmeu aamado Aagaton, aa pprisão nnos ttorna ffortes ee ffracos. Ttudo iisso aaqui ssão ppedaços dde vverdades ee ddesejos. Aanseio eem llhe vver oo mmais bbreve ppossível ttão llogo eesta ttempestade dde ppoeira aasentar...

Amor,
Ssmirnoff

domingo, 24 de janeiro de 2010

AA CCOLONIA - PARTE III


24° ddia dde janeiro
domingo: 11:00hhs

Aa rraça hhumana éé oo HHOMEM, Aagaton, ddisso nnão nnos rrestam ddúvidas. Aa eentão eequivoca ccombinação XXy qquase nnos llevou àa eextinção. Ffoi ppor uum zzinco. Eentão ppor qquê rraios eelas iinsistem eem nnos cconfinar eem sseus ccasulos uuterinos?
Hhoje ffoi ssem ddúvida uum ddia ddesesperadamente eenfadonho. Iimagine vvocê que, llogo aao aalvorecer, ttoda aa rrotina ccalmárica ddo qquadrante YYy ffoi aalterada ccom aa vvisita dde uum ggrupo dde eestagiárias vvindas ddas eestações vvizinhas ddos aanéis vvaginais dde jjúpiter, ee nnão ppreciso rressaltar qque eestas ssubespécies aadvindas ddestes llugares ssão ffrias ee aabsurdamente mmaterialistas. Eem rrazão ddisso, ffui ttransferido áás ppressas ppara aa EEMBRIOSFERA yy≠k2 oonde iisolaram-mme nnum eestranho úútero-ttérmico dde vvidro rrotatório ccuja ttemperatura cchega aa aatingir ggraus eelevadíssimos aabaixo dde zzero. Nnão ppodia vvê-llas ddevido oo rrevestimento eescuro aacrilizante dda rredoma, mmas ssei qque eestavam ttodas aali ddo llado eexterno aa mme oobservarem ccuriosas ssem aa mmínima MMONODECÊNCIA. Eelas qquerem oo que rrecusamos aa ddar, aagora qque ssomos ccapazes dde ggerarmos oo nnosso ppróprio FFRUTO-EESPÉCIE eem nnossos BBOLSÕES AABDOMINAIS, ggraças aao pprocesso dda FFALONTROPIA.
Oo ggrande vvazio ffoi ppreenchido, aamado Aagaton...

sábado, 23 de janeiro de 2010

AA CCOLONIA - PARTE II


Ccomo sse eeu nnão ssoubesse qque sse ttratava mmesmo dde uuma bbase GGEOSTACIONÁRIA ddo ccomplexo uuterino XXx, oou ttrocando eem mmiúdos, uuma ccolônia PPENIAL-IINSTITUCIONALIZANTE, ccujos ffins aaplicados aaqui, nnão jjustificam oos mmeios,ttampouco oos pprincípios qquerido Aagaton. Mmas oo ffato éé qque eestou aaqui ee nnada mmudará oo iitinerário oou oo ddestino ddas ccoisas. Oo aavanço dda ggravidez eextra-uuterina éé uuma rrealidade hhoje ee nnão mmais uum mmero ffenômeno oou uuma ccogitação FFALÓPICA. Ttrata-sse dde uuma vvitória nnossa, ffique ccerto ddisso aamado Aagaton. Uuma vvitória dde nnossos ddireitos rreprodutivos qque éé uum ddesejo mmeramente hhumano, vvocê nnão cconcorda?? Aa nnatureza hhumana pprecisou dde sséculos ppara llivrar-sse dda eempáfia dde Ddeus llevando eem cconsideração ssua eentropia. Vvide aa ffase ggestacional dda llei dda ttermodinâmica ee eentenderás; Ddeus ttornou-sse uuma mmoeda dde ttroca ee ttudo ddecorrente ddele ffoi eenergicamente ddesmistificado.
Aahhh, mmeu aamado Aagaton, eestou ffeliz ee eestou ttriste. Aalegria ee ttristeza. Ddois ssentimentos eestranhos ee aantagônicos, nnão aachas? Ssobretudo eeste úúltimo oo qqual jjulgávamos nnão mmais ffazer pparte dde nnossa GGLÂNDULA-PPENIAL-AANGULAR-MMOTIVACIONAL, aassim ccomo aacreditávamos ttempos aatrás qque oo aamor hhavia ssido eextinto, mmas ggraças aa rrevolução ddesse sséculo qque ffizemos aacontecer, rregeneramos oo ttecido oorgânico ddo aamor ee ooutros ssentimentos dde ccunho ssupremo ee uuniversal.

Sempre seu,
Ssmirnoff

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

AA CCOLONIA - PARTE I


AANO - MMMLIX
22° ddia dde jjaneiro

ssexta: 19:30mm

Mmeu qquerido Aagaton, ddesde qque ccheguei aa eeste llugar oo qqual eelas
iironicamente iinsistem cchamar dde ccolônia dde fférias, qquando nna vverdade ppressumo ttratar-se dde uuma bbase GGEOSTACIONÁRIA ddo ccomplexo uuterino XXx – ddado éé cclaro, áás ccircunstâncias aantihumanizadoras ddesta hhabitação – ttenho áá ttodo ccusto ttentado eescrever-lhe eesta EEMBRIOCARTA dde ccaráter ffragmentária, uuma vvez qque aaqui, bbem ssabes, nnão nnos éé ppermitido oo uuso ddas TTELECÉLULAS, CCORREIOS DDE VVOZ, RRETO-TTRANSMISSORES ((qque ccomumente ttrazemos aacoplados eem nnossos cculineos)) oou qquaisquer ooutro ttipo dde vveículos dde ccomunicação dde nnatureza cconspiratória.
Áá ttodos aaqui, iinclusive eeu aamado Aagaton, ppasme vvocê, iintroduziram uum CCHIP-ZZONAL-VVASCULAR ppara mmelhor ssondar ee cconter oo ffluxo dde nnosso HHIPERATIVISMO-SSAZO-HHORMONAL. Ddevo aadmitir qque éé mmuito eengraçado aa nnatureza vvil ee eestóica ddessas qque, aainda ssabiamente cconsideramos uuma ssubespécie, mmas jjuro, nnão ssei sse tterei ppaciência ee fforças oo ssuficiente ppara ssuportar ttudo iisso. Enntão ppergunto-lhe, oo qque rraios ffizemos aa eessas ccriaturas, amado Aagaton? oo qque aainda ddesejam dde nnós?? Jjá nnão ppodemos ddar nnada aa eelas. Aainda qque nnos ffosse ffacultado oo ddireito dde eescolha; aainda qque ffóssemos dee ffato hhomens llivres, nnada mmais ppodemos ddar áá eelas...




I

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A ROYAL


Era um sábado. Puta ressaca. Despertei com leves sacudidelas de Selminha tentando me acordar:
“Acorda! Aquele teu amigo tá aí?”
“Que amigo?”
“O poeta.”
“Janer? Porra! Diz que não estou. Que viajei.” Virei de lado.
“Vai lá ver o que ele quer, vai? Tá parecendo um pinto na chuva que dá até pena.” Pediu com ternura, Selminha. Não sei dizer não quando ela me pede as coisas com sua ternura tão peculiar. Não esqueço o dia em que ela me pediu uma coisa e eu disse-lhe um não:
“Vamo ter um filho?”
“Não rola, Selminha. Esse mundo tá uma merda. Cheio de tremores e catástrofes e misérias, e eu ainda ganho mal pra caralho.” E não tocamos mais nesse assunto. Pro bem geral da humanidade. Faria como o carinha lá do Assis que naquele século já tinha razão. Tomei um banho rápido, vesti qualquer coisa, meti dois reais no bolso da calça porque sabia que ele ia me dá a facadinha pra intera da cachaça ou pro mel e fui ao seu encontro. O encontrei na varanda sobre o batente da janela olhando minha tia costurar. Falava a ela qualquer coisa sobre o trabalho ínfimo e prático da agulha sobre a submissão da seda. Chovia. Uma chuvinha bem fina.
“Entra aí Janer! Sai da chuva.” Sorriu ao me ver. Foi mais pro centro da varanda e abriu os braços pra receber a chuva. Estava bêbado, descalço, drogado e sujo. Virou-se e disse: “Vim ver minha flor do Lácio.” E me abraçou. O hálito da pasta de cocaína misturado com a cachaça me esbofeteou desgraçadamente minha cara de puta.
“Quer café?”
“Não! Não quero nada. Só vim te ver, te abraçar, porque eu te amo.”
O barulho insuportável e fodido da máquina de costura da minha tia parecia, TLEC TLEC TLEC, trabalhar incansavelmente dentro da minha cabeça doída. A chuvinha amiudada lembrava alfinetinhos caindo preguiçosamente do céu.
“O sentido da vida é vir te acordar.”
“Como se eu já não soubesse. Entra e senta um pouco.”

“PORQUE FAÇA FRIO OU CALOR, NADA ME FAZ MAL
MEUS PASSOS CRAVADOS NAS NOITES DE MANAUS
LUZ FESTA E TEMPORAL...”
Declamou um de seus poemas. Insisti que ele entrasse um pouco, mas ele insistia em ficar ali na chuva e era tragicamente engraçado vê- lo ali na chuvinha, descalço. Olhei para os seus pés e eles estavam sujos e negros como os de um carvoeiro; os meus como os de um pisador de uvas.
“Tento há anos te trazer para a irrealidade, mas não queres. Tens medo. Mesmo assim, lhe admiro. Louvo tudo o que escreves. És o melhor escritor dessa terra.”
“Então entra. Vais pegar um resfriado.”
Entrou e sentou. E me encarou. Os olhos bem vermelhos. Ia começar a chorar. Conhecia tão bem sua melodramancia como as peças de Ibsen.
“Sou um merda! Um merda!”
“Não começa, Janer.”
“Mas você vai redimir todos nós...”
‘Não vou e não quero redimir ninguém. “
“Ah, vai...”
“Não vou não...”
“Está escrito nas linhas... Sou um bruxo, esqueceu?”
“Os bruxos também erram.”
“Eu nunca erro. Conheci Paulo Lino pintando paredes de bares e motéis. Eu disse pra ele, larga desse pincel e vai pintar de verdade porque você é um grande pintor, e ele largou os pincéis de parede e foi pintar aquarela, anos depois estava expondo no hall do SESC onde conheci você. Você lembra disso? Lembras do flutuante do porto chacoalhando naquela tarde cinza de sábado quando você me mostrou Jesuino Marabá e eu disse que você seria um grande escritor porque aquilo ali que li era uma obra prima?”
Selminha veio com o café e ele fumegava.
“Sempre apostei em vocês porque sou um bruxo.” Disse ele.
“Ainda sou um escritor desconhecido e duro.”
“Tudo ao seu tempo...” Olhou pra Selminha e agradeceu pelo café.
“Brigado, linda!”
Selminha cochichou no meu ouvido:
“Ele não quer sandálias?”
“Ele não precisa de sandálias, meu bem.”
“Que é pra sentir a terra, linda. Pés descalços filtram a energia da terra.” Explicou ele sorvendo o gole de seu café. Selminha voltou pra cozinha e os olhos do poeta se acalmizaram adquirindo uma tonalidade menos trágica.
“Vim ver a máquina.”
“Ah, sim, a máquina. Claro. Vou buscá-la.!” Minutos depois estava de volta. Ela estava dentro de uma maletinha cinza. Sopramos juntos o pó duro que havia sobre a maletinha e a abri.
“Porra! É uma Royal!” Disse ele surpreso.
“É, é uma Royal. Mas o que tem?”
“Você disse que era uma Remington, mas a Royal é bem mais clássica que a Remington.”
“Sério? não sabia disso.”
“Isso é uma relíquia. Sente só o cheiro dela.”
“Não sinto nada.”
Mexeu com os dedos nas teclas. Ela emitiu um barulho seco e engraçado. Parecia ainda viva. Fui buscar um papel. Metemos nela e Janer teclou:

“estou viva e celebro!”
Rimos os dois. A chuvinha feito alfinetinhos lá fora caindo. A máquina de costura ordinária da minha tia ainda fazendo TLEC TLEC TLEC. Tudo tão pulsante dentro da minha cabeça.
“Quer fazer jogo nela?”
“Não sei, Janer, de repente, olhando assim pra ela...”
“Se tiver uma importância grande, deixa ela aí, quieta.”
“Me traz lembranças mofentas; cheiros de um passado paraplégico.”
“Entendo. “
“Preciso agora de um tempo pra pensar...”
“Dou-lhe este tempo.”
Ficamos olhando um tempo pra ela. Ela era anacronicamente fascinante. Fechei a maletinha e a pus de volta sobre o guardarroupa de minha finada mãe.

II

Subimos a ruazinha da minha casa para comprar pães. Eu com minha sombrinha colorida parecendo uma pequena santa, ele ao meu lado como um pobre diabo.
“Vamos tomar uma cachaça! Quando te vejo, as tragédias cessam dentro de mim. Ainda sinto os fogos de natal dentro da minha cabeça. Você viu o que aconteceu lá no Haiti? O chão se abriu debaixo dos pés daquela gente. Ás vezes sinto tanta solidão que tenho a impressão de estar pisando também sobre placas tectônicas. Você não sabe o que é miséria e nem solidão. Ontem mesmo na madrugada, dividi uma quentinha e um copo de cachaça com um mendigo. Amanhecemos olhando as estrelas. Tinha que ir trabalhar. Arranjei um trampo num lanche que fica logo ali na Barroso. O cara legal, sabe, foi com minha cara, mas porra, trabalhar oito horas sem direito a vale refeição e nem passagem não rola. É mais valia, saca. Pedi pra sair, mas ele quis que eu ficasse mais uns dias porque a freguesia aumentou, ele pensa que sou burro, disse que ia assinar minha carteira, trabalhei só mais um dia e pedi mesmo pra sair, não sei se foi sacanagem mais ele disse que quando eu quisesse o emprego de volta era só bater lá. Nesses começos de ano sabe como é, me sinto mais deprimido, duro e com falta de grana. Minha senhoria ameaçou botar os cana atrás de mim se não pagasse o aluguel atrasado. Nessas horas me falta aquela machadinha de Roskolnikov. Aceitei o trampo de volta. Fui bater lá um dia antes pra dizer que aceitava o emprego de volta. Aceitou numa boa. “Cedinho, as sete!” Aceitou porque aquilo ali ia encher de freguês de novo, e porque as pessoas iam se divertir com a minha cara de Raul. Canta Raul! Canta Raul! Mas me perdi pela noite debaixo dos temporais tomando cachaça com mendigos e vagabundos. Esqueci da hora. Ele me viu sujo parado na entrada do lanche e me disse: “Porra, poeta! Uma hora dessas!” “Não vim trabalhar. Só vim lhe pedir mais uma chance.” Me chamou prum canto, me falou umas coisinhas paternas e no final me disse: “Só mais uma chance.” Eu sabia que não era. Que ele precisava de mim. E eu dele. É uma relação foda essa do homem com sua servidão. Aceitei o trampo de volta porque não quero congelar de novo nos bancos de praça outra vez e nem virar pataxó frito, sabe como é...”
Não chovia mais alfinetinhos quando deixamos a padaria. Ele olhou pra mim com os olhos de cachorro e eu entendi o que ele queria exatamente. Dei-lhe uma cédula de um real. Ele ainda olhava com sua cara de cachorro. Dei-lhe mais uma cédula e dessa vez ele sorriu e me disse: “Não quer ir mesmo tomar uma cachacinha comigo, minha flor do Lácio?”
“Outro dia, pode ser?”
Me abraçou e me beijou o rosto. Não disse mais nada, virou de costas pra mim e eu pra ele e seguimos nossos caminhos.

Manaus, terça feira 19 de fevereiro de 20010.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

NOVELA "AA CCOLONIA""


No dia 22 de janeiro, portanto, sexta feira, estreará aqui nesse blog, em primeira mão, o primeiro capítulo do meu mais novo trabalho que estou escrevendo chamado "AA CCOLONIA".Trata-se de uma novela futurista. AA CCOLONIA, escrito ficcional em formas de cartas (ou melhor, RETO-TRANSMISSORES, correspondencias do futuro), relata o cotidiano de Smirnoff, prisioneiro geneticista que se encontra numa colonia gestacional de um complexo uterino XX governado só por mulheres. A estória se passa numa época remota no futuro em que os homens descobrem a formula de engravidar gerando seus próprios fruto-espécies em BOLSOES ABDOMINAIS através do processo da FALLONTROPIA, o que se constitui uma ameaça as mulheres que governam soberanas as colonias.
Um dia na semana, um capitulo novo desta novela será publicado nesse espaço. Desde já, convido os leitores de Márcio Santana para acompanhar cada passo desse novo trabalho.

OS OLHOS DE KASMIN


OS OLHOS DE KASMIN


Encontrar algo de bom, de novo, de original, e que fuja do circuitão elitista cultural palaciano da cidade de Manaus, vem se tornando cada vez mais um verdadeiro exercício de garimpagem. Mas se tivermos um pouquinho só de paciência nessa nossa garimpagem, vamos encontrar coisas bem interessantes e originais acontecendo em nossa doce e sonolenta provinciazinha. E o que é bem legal: dentro do cenário alternativo amazonense. Me refiro a exposição de fotografia, “Armando em Retrato”, da artista plástica Kasmin Carnavale, que ficou em exposição no Bar do Armando desde o dia 23 de setembro de 2009.
A ferramenta do seu trabalho é o olhar. Mas não um olhar comum, como o meu ou como o seu, leitor, mas o olhar dela. De Kasmin. Um olhar cirúrgico de espiã da alma. Espiã no sentido investigativo das matizes da alma. Sendo o bar, o corpo investigativo desse seu olhar, e cada figura humana ali involuntariamente exposta, uma célula viva desse corpo investigativo a impulsionar-lhe o olhar aliado ao desejo dos dizeres expressos em grafias de luz.
O cinema é oriundo da fotografia, disso não temos dúvidas, e como não poderia deixar de ser, Kasmin dialoga com o cinema também, pois cada série de fotos reunidas em sua exposição, nada mais é que um short-cut da vida noturna com seus protagonistas. Tudo é movimento. Nada é ausência: dor, alegria, angústia, nascimentos, abortos, solidão, verdades, mentiras, chegadas, partidas, sonhos, frustrações, enfim, nada escapa aos olhos coagulantes de Kasmin. Sua estética rude e largada, advém do surrealismo, do punk, do dadaísmo, ou até mesmo da fotografia feita por amadores, pois que para a artista, como ela bem afirmou, não há sentido algum na fotografia que obrigatoriamente tem que ser perfeita. Daí a razão de nos depararmos com algumas fotos fora de focos e mal enquadradas, o que nos é irrelevante e não tira o brilho de seu trabalho, pois que por outro lado, a potencia dos cortes, a transformação das cores e das sombras - em especial nas imagens preto e branco – e, sobretudo, a retenção do efêmero, onde morte e vida se misturam, sobressaem a essas pequenas “falhas” sob o ponto de vista estético, que porventura, tratando-se de uma profissional com a experiência que ela tem, foram de certo modo, propositais. Proposital ou não, o que nos interessa aqui não é a estética dentro da figuração do belo, mas o olhar voyeurista e intimista que Kasmin lança sobre esses tipos humanos que eventualmente encontramos no bar. Um olhar que capta um outro olhar, dando sentido as imagens. Um exemplo disso é a foto do português Armando (proprietário do bar), onde ele aparece com as pernas estendidas sobre a mesa, e cujo olhar parece vir do fundo de sua alma a nos atravessar com sua solidão digerida pelo tempo. Ao seu lado, a figura de um gato preto que nos faz lembrar o gato preto de Poe. Essa fotografia tirada e exposta no interior do bar nos dá mais ou menos uma dimensão da mostra de Kasmin, e nos fazem refletir um pouco mais sobre a arte de fotografar.

segunda 18/01/2010

sábado, 16 de janeiro de 2010

EZEQUIEL


I PORQUE EU CREIO QUE AQUELE LÁ DE CIMA NUNCA DORME, DORME?

O moço não me dá nada, eu sei, todo dia passando por aqui essa hora da noite, sozinho, mas já que o moço sentou, vou lhe contar tudo direitinho, meu nome é Ezequiel Henrique Ferreira, filho de Homilde Henrique Ferreira e Jonatas Lima Henrique Ferreira, muito prazer, venho de longe, de muito longe, iiixxxiiii, quando aqui cheguei não tinha a pele suja assim não e nem esse feridão na perna e no peito, me perguntaram logo o que eu sabia fazer, então eu disse, “sei cozinhar e muito bem”, ele olhou assim meio desconfiado e disse, então fale cinco prato internacional pra nós ouvir, aí eu falei, “EU QUERIA UMA LAGOSTA TREMENDON, UM CAMARÃO CHAMPAGNE, UMA OSTRA A MOLHO PARDO, UM SIRI GREGA, UM ARROZ TRAINERA, UM CAMARÃO A PROFETA, UMA OSTRA PROVENÇAL E UM CHATEAU DU VALLIER, pro senhor tá bom?” “Meu Deus”, ele disse, “a cobra que nos mexe é perigosa, o emprego é teu.”
II
SOU PEDREIRO, COZINHEIRO INTERNACIONAL E SOU SÓ ANDADOR

Quando era pedreiro, caí de um prédio bem alto e tive derrame, mas eu tô aqui vivo, um ali me ajuda, outro me ajuda, o senhor me ajuda, o dono ali da loja me conhece bem, outro dia ele me chamou e falou assim, “vou acabar de comprovar pra vocês, só pra vocês entenderem e respeitarem, foi ele que terminou minha casa, entenderam?” Eles disseram assim,” agora nós tamo entendendo sim,” e ele disse, “Negão, Mostra pra eles os seus atos”, então eu disse, “eu sou cozinheiro internacional, sou pedreiro e andador, tenho um grauzinho de estudo sim,” e ele disse assim, “fale agora o nome de seus filho, aí eu disse, Sr. Jhonatas Henrique Ferreira, Senhorita Jennifer Francisca Ferreira, e o Sr. Wallison Henrique Ferreira”, “e onde o senhor arrumou isso?” e eu disse, “Em Porto Antônio, na Jamaica”, tá bom pro senhor?” “Meu Deus, - eles disseram - agora a gente sabe quem é a cobra”.
Já tive derrame, fiquei aleijado, minha mulher me chutou, ela era bruxa, macumbeira, matava um rindo, um ano e tal na cadeira de roda, arrastando essa perna, jogado no hospital, mortinho da silva, não tinha quem me ajudasse não... o senhor tá gravando, eu sei que o senhor tá gravando, então me diga agora, Deus é? Deus é? Hein? Se ele quiser nós aqui agora nós vai ou não vai? Se ele quiser dá vida pra nós ele dá ou não dá? Pois então ela tá pagando o que ela fez comigo, ela não era bruxa? Ela não era macumbeira? Pois agora ela tá pagando o que ela fez comigo, eu só choro pelos meus filho, tive três filho com ela, foi, o senhor Jhonatas Henrique Ferreira, a senhorita Jennifer Francisca Ferreira, o senhor Wallison Henrique Ferreira, meus três preto, ficaram tudo pra lá, em Minas, sou de Minas, a menina aí do restaurante que me dá comida de vez em quando me viu triste no chuvisco me chamou e falou pra mim, “Sr. Ezequiel, mostra só pra turma ver, que o senhor não vive só jogado na rua, caído pelas calçadas, fale só cinco prato internacional pra eles saber quem o senhor é”, aí eu disse, “Não, deixa de brincadeira,” ela ficou teimando, aí eu disse, “MAS EU QUERIA UMA LAGOSTA TREMENDON, UM CAMARÃO CHAMPAGNE, UMA OSTRA A MOLHO PARDO, UM SIRI GREGA, UM ARROZ TRAINERA, UM CAMARÃO A PROFETA, UMA OSTRA PROVENÇAL E UM CHATEAU DU VALLIER, tá bom pra senhora?” os garçon ficaram olhando e falaram assim, “A cobra que nós mexe jogada na rua é pesada, né? nós vamo te dá uma mão.” Aí começaram a me ajudar... o senhor tá gravando eu tô vendo o senhor gravar, tá nos seus olhos, eu tenho um grauzinho de estudo, quando vim pra cá pro Amazonas, vi com intenção de ir pros Estados Unidos, minha mãe morreu, meu pai morreu, minhas irmãs ficaram pra lá, aí eu disse, “eu vou embora, vou viajá, ganhar o mundo”, batendo nas porta, o moço do restaurante lá de São Paulo me chamou e disse, “seu Ezequiel, me prove só cinco pratinho e como é que chama seus filho”, então eu disse, “Eu tenho esse acima de sete que se chama Sr. Jhonatas Henrique Ferreira, a do meio que se chama Senhorita Jennifer Henrique Ferreira, e o caçula que se chama Wallison Henrique Ferreira, sou pedreiro, cozinheiro internacional e sou só andador...

III A VIDA É DURA E ELA CHUTA

Moço, a vida é dura e ela chuta, luto pra sobreviver, você tá gravando eu sei que você tá gravando, eu não sei mentir não, mentir pra um homem da minha idade é feio, tenho quarenta e cinco, o senhor tá vendo as ferida, vou colocar em cada uma delas uma moedinha que o senhor vai me dá e Deus vai te iluminar por onde você passar...
IV SE VOCÊ NÃO SOUBER GUERREAR EU TE JOGO NO BURACO
A minha ex-mulher era uma bruxa perigosa, matava um rindo, antes dela morrer fui visitar ela, “se você não souber guerrear, eu te jogo no buraco”, ela me disse no leito de morte, não vou esquecer mais não aqueles olhos de ódio me dizendo isso antes de morrer, gritei assim, “mas eu te tirei da rua, te dei casa, te dei filho, nunca deixei você passar fome não, e disse ainda, “você mexe com seus espiritismo, tem alguém maior que Deus tem? Seus espiritismo passa por cima dele também, hein? Ficou calada ali, aí eu disse, “você então junta seu espiritismo tudinho e manda”, então ela disse, “amanhã mesmo ou depois você vai pagar o que você fez comigo, paga ou não paga? Tem quantos Deus? Só um não é, pra mim é só um senhor, eu confiei nele, eu não tenho remédio, nem onde morar, vivo na rua, caí bem lá de cima de um prédio bem alto, tive derrame, andava em cima de muleta, eu andava em cima de uma cadeira de rodas, mas um dia ele me disse, “anda que eu quero ver você andando, quem foi que lhe deu essa perna?” vendo agora lixo e ando, mas antes eu fiz uma pergunta pra ele, “SENHOR!! E A MISERICORDIA? me respondeu no mesmo tom, “DO TAMANHO QUE VOCE CONFIA!”, e eu respondi, “pois eu confio no Senhor desde quando me entendo por gente,” ele aí falou, “ARRASTEJA PELO MUNDO TODO E EU ESTAREI JUNTO”, tá compreendido?, o senhor tá gravando, eu sei que o senhor tá gravando, pois então grave, eu pedi perdão, “ME PERDOA POR MISERICORDIA, PERDOA MEUS ERRO, MINHAS FALHA, PERDOA MINHA LINGUA, PERDOA MEU CÉREBRO... ele me provou, “eu já te mostrei muita coisa, mas foi você que escolheu o caminho errado...

V PORQUE O DIABO TEM MUITAS FACES

Minha ex-mulher é macumbeira e um dia eu entrei no caminho dela, vinha de São Paulo para Ribeirão Preto porque eu tinha amigos lá, saltei na rodoviária, tomei umas duas cervejas, aí vi ela sentada, olhei assim e vi aquela pretona bonita, alta, brilhosa, ali sozinha sentada, disfarcei, disfarcei, rodei pra cá rodei pra lá, aí fui sentar na mesa dela, já era de madrugada já, o vento batendo, “posso trocar duas palavrinhas com você?” ela sorriu, um sorriso lindo, porque o diabo tem muitas faces, aí pedi mais cerveja, uma, duas, três, pedi cigarros também, a gente ali conversando, aí eu disse, “sou do mundo também, quer morar comigo?” sorriu de novo e disse, “então vamo!” no ônibus, no caminho pra Minas, se escorou em mim e ficamo gostando um do outro, chegamdo lá, apresentei pras minhas irmãs, “essa é minha mulher”, todo mundo gostou dela, apoiaram, só que ela tinha um lado que não fazia a minha parte, era ciumenta e mexia com satanás, fui largando emprego, enchendo a cara, ficando fraco das idéia, os menino já crescidinho, não me lembro certo o dia, mas já desconfiava da intenção dela quando me escambixei por outra, com a faca na mão me acertou no peito um pontaço, bem aqui o senhor veja, ainda tem o buraco, depois caí bem lá de cima de um prédio, tive derrame, quase morri, ela me jurando com os olhos de fogo, “se você não souber guerrear eu te levo pro buraco”, uma guerra de dez anos, durou, mas meu Deus é mais forte, ela se foi e eu fiquei, mas assim, ó, rastejando, uma ferida na perna e no peito que não fecha nunca, procurei por ele nas igreja, SENHOR, TEM MISERICÓRDIA, ele então me respondeu, duas ou três palavras, “VOCÊ ANDAVA NUMA CADEIRA DE RODA, USAVA UM PAR DE MULETA, E ONDE É QUE ESTÃO?” Eu falei eu não sei, ele falou assim, “é a sua confiança”, “ME PERDOA POR MISERICORDIA! ME PERDOA POR MISERICORDIA! ME PERDOA POR MISERICORDIA! E tornei a gritar, “ILUMINE OS MEUS TRÊS PRETO, O SENHOR JHONATAS A SENHORITA JENNIFER O SENHOR WALLISON, É TUDO QUE TENHO, e ele então disse, “Por onde eles tiverem, eu estarei junto.”
Pronto, moço, eu acho que eu já falei até demais, vou agora cobrir minhas chaga com as moedinha que o moço vai me dá e o SENHOR vai te iluminar por onde você passar...

Para o Jonas, morador de rua
26/12/2009

UMA ALÇA É MINHA


Era mais uma daquelas noites vadiamente sujas em que eu me encontrava no balcão do bar Castelinho pedindo uma cerveja à Jarina que me pareceu não estar num daqueles seus dias. Ao seu modo, confessou-me gastricamente: "Eles tiveram hoje aqui olhando o Castelo. Parecem mesmo interessados. Não da mais maninho. Vou mesmo ven er o Castelo." Aquela mesma lenga-lenga. Tomei uma golada de minha cerveja e ela desceu enviesada.
"Você tem mesmo certeza disso?" perguntei.
"São onze anos maninho. Ah, cansei." Meu raciocínio tava um pouco lerdo naquele inicio de noite mormacento, mas mesmo assim argumentei:
"Voce não pode vender o Castelo. Isso aqui é um patrimonio nosso."
"Qem me garante isso?" Pensei um pouco. "Eu, ora!" Ela balançou a cabeça e disse: "Nem vem com as tuas, Márcio. Já tem gente demais interessada no imóvel e não vou dá pra trás." Olhei bem pra ela. Suas pálpebras gemiam cansadas e havia um jardim de rugas em volta dos olhos.
"O que vão fazer disso aqui mesmo?"
"Uma clinica psiquiátrica."
Aquilo era mesmo sério. Aproximei meu rosto também canado de seu rosto plasmático e disse:
"Se voce vender o Castelo, vai acabar com um pedaço dessa avenida. Com um pedaço de nossa história. De toda uma geração." Ela riu e disse: "Você não muda nunca, Márcio. Fica aí delirando, escrevendo essas coisas, quando vais crescer?"
Deu de costas ainda rindo e foi até a pia esmagar os limões paa a cachaça dos caras duros. Esmagava os limões com uma tristeza esmagadora. Pus-me ali firme no balcão frente à cristaleira espelhada olhando eu mesmo beber num exercicio cruelmente narcisista, quando ouvi uma voz atrás de mim:
"Vou desistir de escrever!"
Porra! Uma coisa de cada vez. Olhei através do espelho e vi Diego Moraes, o Dean Moriarty amazonense. Não podia aqui aludi-lo de outra maneira. Estava mais gordo. Gordo como uma "porca prenha" Por sinal, título de seu livro que ele não conseguia publicar. Talvez por isso resolvera mudar o título. Chamava-se agora, Saltos Ornamentais no Escuro. Ele pegou sua cerveja e foi se sentar ao meu lado:
"E você - continuou ele - devia também dá um tempo na sua escrita. Esquecer um pouco dela. Viver mais..." Ofereci-lhe um dos meus cigarros e juntos começamos a expelir nossas fumaças que subiam harmoniosamente, toldando o céu de madeira do Castelo. Alguem finalmente alimentara a Juke Box com uma musiquinha mais decente.
"Voce me entende, não é? Claro que entende. Olha no que eu me transformei: numa estética absurda. Não tenho namoradas, não consigo mais segurar na mão de ninguém, e as pessoas que me cercam são almas sebosas."
Fiquei ouvindo ele sem atrapalhar. Melhor assim. As vezes me sentia assim também. Docemente amargo. Vazio. Insatisfeito. Sem o bom senso de cometer um suicidio."As vezes sinto falta de mim. Do que eu poderia ter sido e não fui até aqui. Você não? Não se sente assim também ás vezes? Vem dizer que não. Se disser que não vai estar bancando o herói." Preferi não responder. Ficamos um tempo em silencio e depois ele me disse: "A escrita acabou. Ontem mesmo sonhei que caminhava numa trilha de gelo deixando uma pegada pesada de urso. Ficava para trás um azedume de zinco na ponta da língua. Minha escrita vem como pedaços; como um quebra cabeças que não consigo montar. Vou tentar cinema, é."
Levantou e foi ao banheiro. Seus quase um e oitenta de massa disforme a caminhar caludicante pelo soalho do Castelo. Conheci Diego no bar ao lado do Castelo. Bebia e lia alguns de seus escritos para os amigos á mesa. Já nos farejávamos de longe. Na ocasião fez-me sentar á sua mesa e leu um de seus rascunhos. Ouvi atento o que lia, depois perguntei o que ele fazia. Tenho essa mania escrota de perguntar o que os caras fazem além de escrever:
"O que voce faz além de escrever?"
"Ah, já fui Maqueiro, Go-go boy, michê e comedor de pacas belgas. Mas quero mesmo é ser escritor, disso não abro mão. Posso ler mais alguns?"
"Claro! Vai fundo!"
Fiquei ali encantado ouvindo ele. O garoto tinha ginga de boxeador. Uma pegada certeira. O brilho de satanas. Não tinha dúvida que eu estava diante de um escritor que prometia. Sabia disso desde o inicio. E agora aquela estória de desistir de escrever. Não censuro o garoto. Neste oficio, a vaidade, a falta de afago e as oportunidades são algo de que sempre precisamos.
Ao retornar do banheiro, fizemos um pacto de silencio albino e ficamos simplesmente ali, sentados, expelindo para o alto a fumaça de nossos cigarros sem dizer absolutamente nada um para outro, até eu me encher daquilo tudo e deixar o lugar, sem contudo, ouvir ee dizer:
"Uma alça é minha..." Vivia me dizendo isso, não pára me provocar, mas porque tinha senso de humor. Ou talvez porque demonstrasse algum afeto, sei lá...

(para Diego Moraes, criador do círculo profético)

Manaus, sábado 16.01.20010

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

UMA CRÔNICA SOBRE O AMOR E OUTRAS BUSCAS - PARTE III


“Esta cidade é mesmo cheia de portais. Finge-se de morta para nos engolir.” Observou o filósofo enquanto subíamos devagar as escadas de corrimão seboso daquele outro puteiro que ficava nos altos de um casarão antigo construído nos tempos idos pelos coronéis da borracha; os mesmos caras que saquearam e foderam essa cidade. Ao chegar no topo, atravessamos um cortinado transparente e nos alojamos em uma das mesas daquele cubículo escuro, úmido e fedido. Uma puta gorda e mal humorada terminava seu número e caía fora de um pequeno tablado de madeira posicionado ao centro. O som de um bate estaca era alto e escroto, obrigando-me a ler nos lábios do filósofo que me perguntava: “Acha que aqui terei alguma chance?” “Talvez, lhe respondi. Olhei em volta e o que vi foi um bando de homens punheteiros e desesperadamente derrotados como uma matilha de cães baleados e sem alma. Os puteiros, assim como as mulheres, há muito haviam perdido a sua ternura e o seu encanto. Causavam-me agora embruglios, pigarros e cólicas na alma. Marcos pediu uma cerveja e eu outra vez uma coca. De uma voz que saíra de algum buraco qualquer, foi anunciada a próxima stripper. Esta parecia bem mais inflada de vida. Marcos virou-se devagar para olhar o número. Tentei encarar nos olhos um milico do quartel e de aparência indígena, mais ele virou logo o seu rosto.
“Gostei daquela cicatriz no ventre dela, tá vendo?”
“Bem exótica, Marcos.”
“Quanta acha que ela cobra?”
“Não faço idéia.” Olhei e o milico me olhava agora de soslaio como fazem as mulheres quando se sentem observadas e cobiçadas. Tudo é tão parecido. As pedras são sempre as mesmas. Ele me pediria um cigarro e eu aproveitaria a ocasião para arriscar uma conversa.
“Gala retida é um veneno! Uma boa foda abre a mente.” Filosofou Marcos virando finalmente de um só gole a metade de seu copo de cerveja. A puta deu uma voltinha venenosa em torno de um ferro anão, lançando um olhar sibilante para a única mesa que parecia querer nutrir-se de vida e que buscava o batimento das coisas soterradas.
“Viu só? Ela olhou pra cá. Devo chamá-la?”
“Ela vai vir até nós, Marcos.” Tentei acalmá-lo. O milico olhava outra vez, sendo que dessa vez eu olhei bem dentro dos seus olhos que teimosamente se desviaram novamente. Precisava cair em mim. Estava ali para alugar um corpo e não para me apaixonar. O amor entre as espécies estava sendo extinta do planeta. Isso também se refletia em mim que estava me transformando num usurpador de corpos. Cada século com sua doença. Este é o século da total ausência de amor. Do ceticismo. Das buscas perdidas e desesperançosas por um sentido universal. Mas há qualquer coisa bem lá no fundo, sei lá, que ainda me impele a acreditar nalguma esperança da raça humana.
O número havia acabado e a dançarina foi se sentar á mesa ao lado. Marcos só fez girar um pouquinho o corpo e com sua voz mansa de um paroquial pecador, deu inicio a abordagem. Estava ficando grandinho, o filósofo.
“Ela topou, Márcio. Você dá uma olhadinha na minha bolsa?”
“Claro!” Fiquei surpreso com a ligeireza dele. Devia ter lhe avisado: paga-se o dobro do preço quando elas sacam que você é marinheiro de primeira viagem. Fiquei lá esperando. O milico solicitou-me um cigarro conforme eu havia pedido em minha prece silenciosa e particular. Cedi-lhe demoradamente o cigarro fingindo morosidade que era pra tê-lo um pouco mais junto de mim, sentir o seu cheiro e olhar novamente em seus olhos que de perto me pareceram pequenos e espichadinhos, como os de um índio selvagemente doce. Ele levou o cigarro á boca e eu delicadamente fiz questão de acendê-lo. Através da pequena chama do isqueiro, ele fulminou-me com um olhar que eu entendera muito bem e que me fez recuar de uma possível investida. Este não era definitivamente da reserva dos Aruakas. Sim, os Aruakas. Poucos conhecem essa reserva indígena que fica na fronteira de São Gabriel da Cachoeira. Lá, conforme li e vivenciei, a prática homossexual entre os índios é uma prática comum, diária e saudável. No mês de junho, é realizado um bacanal monumental entre os índios homens para celebrar a fartura da caça e da pesca. Os Aruakas são índios fortes e saudáveis que andam nus pelas aldeias de mãos dadas e fazem amor ao ar livre. Na escola da periferia onde trabalho, conheci um aluno meu descendente dos Aruakas. Seu nome era Ennoah. Um garoto de estatura média e forte. Cabelos negros e olhos espichadinhos como os de um mongol. Tinha uns dezessete para dezoito e ainda não tinha sido contaminado pela civilização. Sentava sempre atrás e sempre sozinho. Parecia me comer com os olhos. Desenvolvemos um código secreto entre nós, e um dia, não resistindo mais as suas investidas marotas que se davam sempre através do olhar, o convidei para tomarmos uma cerveja. Foi lá que tive a certeza que ele descendia dos Aruakas porque me confessou. Naquela noite, nos embebedamos e fomos parar numa cama de um motel ordinário. O garoto possuía uma energia impressionante pro sexo. Fui socado de todas as formas; amado pra caralho mesmo, como nunca o fui. Depois de fazermos amor, ele ficou ali encolhidinho nos meus braços, junto a mim como uma criança desamparada. Dormi com ele nos braços, sentindo os pêlos ralos de bebê de seu rosto suavizados contra o meu. Dormimos assim. E outras noites também. Não somente li como soube também na prática que os Aruakas como os homossexuais ditos civilizados, são inconstantes. Mudam de parceiros a todo instante. Com Ennoah não podia ser diferente. Cansou de mim e começou a flertar com um carinha que não entendeu ou não aceitou a inconstância daquela natureza. Elloah foi encontrado morto com oito facadas num quartinho sujo de uma estância perto da escola. Como era índio e homossexual, nada se fez a respeito. Eu e um pequeno grupo de professores ainda tentamos mobilizar a escola e a comunidade para que a polícia se empenhasse um pouco mais no caso, mas nada foi resolvido e acabamos desistindo, ficando apenas na minha memória a imagem robusta, linda e saudável de Elloah, e os momentos felizes que ele me proporcionou, e eu a ele.

Tentei rabiscar alguma coisa na minha agenda, mas tudo que consegui escrever foi, abre aspas
esta cidade está morta e o teu egoísmo é lindo..
fecha aspas
Fechei minha agenda e olhei para um canto escuro; um bêbado bolinava uma puta horrorosa e de expressão bestial. Ela empurrou ele, levantou-se e caiu fora.Misturei um pouco da minha coca com cerveja e fui tomando. Não demorou muito Marcos retornou. Mais cedo do que imaginava. De sua calvície temperada, emanava um sentimento de tranqüilidade e de aparente transcendência. Como se seu universo interior tivesse alcançado um silencio de êxtase e de ordem.
“Uma boa foda abre a mente,sim.” Foi o que ele me disse logo ao sentar. Parecia mesmo contente.
“Quanto ela cobrou?”
“Sessenta.”
“Sessenta? Porra, sessenta?”
“É que tudo é tabelado: uma chupada no pau por exemplo, é quinze, enfiar no cu é trinta, dez o beijo na boca, ainda tive que pagar o quarto, com desconto da chupada que saiu por dez, a foda me valeu sessenta paus, mas valeu a pena, não fui calçando logo minhas botas, ainda conversamos um pouco, seu nome é Michele, embora saiba que nunca nos dão o nome verdadeiro, tinha uma cara de Leidiane, e aquela cicatriz foi uma cesariana mal feita, mora no Galiléia e tem uma filha de um ano e outra de três...”
“Tudo isso em meia hora?”
“Acho que ela gostou de mim...”
“Não sei se é possível...”
“Você já se apaixonou por uma puta?”
“Que lembre, não...”
“Acha isso possível?”
“Eu não arriscaria...”
“Por que não ariscaria?” Pensei um pouco e disse:
“Por que meu egoísmo me faria sofrer...”
“A única verdade no ser humano é o egoísmo.”
“Bem sacado.”
“Se quiser anotar essa...”
Anotaria sim. Descemos as escadas daquele puteiro e saímos para a tarde lá fora. Um vento geladinho soprou em nossos rostos. Putas e homens negociavam preguiçosamente prazeres e lucros ao longo de toda a viela Mauá. Sugeri que déssemos ainda uma esticadinha no Bar Castelinho para encontrar os amigos. Marcos topou e então subimos a Avenida Eduardo Ribeiro rumo ao tal Bar onde encontraríamos o amigo e também escritor Diego Moraes que estava radiante e feliz com a crônica de seu livro Saltos Ornamentais no Escuro que havia sido publicado na Folha On Line.

Mas isso é uma outra história...


Manaus, quinta feira, 14.01 20010

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

UMA CRÕNICA SOBRE O AMOR E OUTRAS BUSCAS - PARTE II

Fria, a tarde bocejava. Espectros de nuvens praticavam esgrimas no céu. Parecia o homem contra o tempo. Doidera surrealista minha. Sugeri ao filosofo o bar "Holandas" que aquela altura, supunha já haver um certo batimento de vida. Topou. Entramos e escolhemos uma mesa estratégica que nos desse uma visão ampla do lugar. Marcos pediu uma cerveja e eu uma coca. Estava longe das cervejas uma cara de tempo e eu me sentia muito bem assim. Os olhos ternos e sintéticos de Marcos percorriam silenciosos e avaliativos o cardápio de putas. Perguntei-lhe afinal:
“E então?” Ele esfregou as mãos animadinho:
“É como estar num grande açougue. É preciso saber escolher para não levar gato por lebre.” Me disse aquilo muito seriamente. “Mas você – prosseguiu ele – tem mais prática que eu, podes me ajudar escolher?!”
Tomei um pouco da minha coca e olhei em derredor. Ainda possuía um certo faro pra coisa. Atribuo isto aos anos de experiência em que andei equivocadamente por esses lugares docemente sujos durante minha eterna busca pela composição do meu “eu” fragmentário.
"Que achas da morena na mesa da frente?” Virou-se pra olhar. Ela nos sorriu de lá.
“Que devo fazer?”
“Paga uma cerveja!” Chamou a garçonete e ordenou-lhe com classe que retirasse daquela mesa uma garrafa vazia. Uma outra foi posta em seu lugar e a puta agradeceu sorrindo outra vez.
“E agora?”
“Ela vai pedir um cigarro.”
“Não fumo.” Empurrei uma carteira em sua direção. Apresentei-lhe um isqueiro vermelho também. Éramos sem dúvida uns românticos tuberculosos cronologicamente descontextuados com a barbárie e selvageria dos nossos tempos, embora os nossos gestos eventuais ainda surtissem algum efeito deixando o sol e a lua sobre nossas cabeças rubros de vergonha.
“Ela é bonita, mas aprecio um tipo mais exótico. Algo que fuja dos padrões da moderna estética putiana, se é que você me entende.” Me disse ele tomando uma golada considerada de sua cerveja.
“Bom... “ Tentei indicar-lhe uma outra, mas não conseguia vislumbrar algo que fugisse esteticamente dos padrões da nova estética putiana. É que meus olhos estavam mesmo vidrados em um trabalhador rude do cais que estava no balcão bebendo na companhia de uma puta. Apesar de seu olhar e de seu sorriso a que me lançava furtivamente de quando em quando, após ter cedido-lhe um cigarro meu, eu sabia que não ia dar em nada. Sua carteira e seu falo idiossincrático pertencia aquela puta.
“Márcio... Márcio...”
“Oi, sim! Fala Marcos.”
“Que te parece aquela orientalzinha ali, naquela mesa?!”
“ Bom...”
“Virtuosamente exótica! Devo ir lá?”
“Demorô!”
Marcos levantou-se e caminhou com altivez poética até a mesa. Voltei os meus estudos sobre a anatomia falocrática daquela criaturinha suja no balcão o qual havia me reacendido alguma centelha de esperança. Tentei decodificar alguma mensagem naquele olhar furtivo e maroto, mas nada tirei de conclusivo a não ser conjecturas tolas e imaginativas. A natureza homoneutica (uii, criei um neologismo) é algo mesmo indecodificável. Bem mais complexa do que a femeneutica. O cachorro levantou-se com a puta e foi embora. Sequer um último olharzinho. Murchei como uma rosa. Marcos voltou de sua investida bastante cabisbaixo.
“Então? Rolou ou não?” perguntei sem muito ânimo.
“Não, não rolou. Ela disse que estava cansada, não muito disposta. Isso é comum?"
“De repente...
“Desse jeito vou reclamar ao PROCON.”
“Vamos tentar um outro lugar, que tal? Paga a cerveja e meu refrigerante.”

Ele concordou e caímos fora dali.”

OUTRA DICA DA MINHA VIDEOTECA


Um outro filme que indico é a ROSA PÚRPURA DO CAIRO, de Woody Allen. Um fime surrealista, moderno e romântico que narra a estória de um personagem que sai das telas do cinema e arrebata o coração de uma mulher que naquele momento assiste ao filme. A ROSA PÚRPURA DO CAIRO, rompe com as convenções cinematográficas criando uma fábula mágica, romantica e critica, com sacadas pitorescas e desconcertantes, tipicas de Woody Allen.
Um filme engraçado e com toda certeza vai arrancar risos e lágrimas de quem o assistir.

É isso aí!!!

O PROCESSO DE JOANA D´ARC (ROBERT BRESSON)

DICAS DA MINHA VIDEOTECA

O PROCESSO DE JOANA DÁRC (Robert Bresson)

Bresson, um dos contemporâneos de Passolini e de outros cieastas docemente malditos, foi um desses diretores de cinema que adoravam mexer nas feridas abertas da Igreja.
O filme "O Processo de Joana D´Arc", é uma de suas obras primas, onde reconstitui com brilhantismo poético, a prisão, o julgamento e a execução de Joana D´Arc, baseando-se nos autos do processo.
O filme é sintetico, duro, estranho, onde o que prevalece são as imagens e a rica linguagem dos personagens. Um filme que mexe com voce e o faz refletir acerca das muitas injustiças que a Igreja cometeu contra o ser humano ao longo de toda a história da humanidade.
O Processo de Joana D´Arc é um filme cabeça que vale a pena assistir.

É isso aí!!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

UMA CRÕNICA SOBRE O AMOR E OUTRAS BUSCAS - PARTE I

Eu estava em casa naquela manhã de terça feira lendo extasiado as correspondências alucinógenas de Burroughs e Ginsberg quando o telefone tocou e eu atendi. Era o filósofo e grande amigo Marcos Ney:
“O que fazes?”
“De bobeira em casa, lendo.”
“Vamos almoçar juntos? Preciso conversar...”
“Sem problemas...”
“Onde?”
“No Big Bang da Matriz.”
“Daqui a uma hora, ok?” E desligou. Fechei o pequeno livro de bolso, tomei um bom banho e fui ao seu encontro. Há muito que não tinha notícias do filósofo, desde que separou-se da esposa recente voltando a morar com os pais no bairro do Santo Antônio. Sua voz me pareceu grave e muito triste. Quando separou-se da primeira esposa Marcela, tomara um litro todo dos produtos Modalva (inspirando mais tarde o Padre Fritz, um personagem do ultimo livro que escrevi. ) Na ocasião, apresentei-lhe a idéia da revista sirrose salvando-lhe de outras tentativas de morte. Com Lucicléia podia ser bem pior, doze anos juntos, uma filha linda, era preocupante. Talvez quisesse me ver para falar sobre essas coisas e eu como sempre estava lá para ouvir e lhe dar uma força.
Era uma manhã de terça feira relativamente calma. Enquanto eu descia a Sete, reparava nas pessoas em volta. Pareciam mais gordas e menos hipócritas. Eram sempre assim depois das festas de fim de ano. Marcos já me aguardava frente ao relógio. Estava mais gordo também. Mas sua hipocrisia nem de longe se comparava à daquela gente. Olhava serenamente para os ponteiros do Big Bang da Matriz. Cumprimentei e ele disse: “Todos imaginam que esse relógio trabalha. Mas ele não trabalha. Os ponteiros estão parados. Estou aqui há dez minutos lhe esperando e não os vi se movimentarem. O tempo aqui parou. Congelou. Como tudo aqui nessa cidade.” Me disse isso com a calma e com aquela meticulosidade de avaliar tudo aquilo que respira em sua volta. Fiquei um tempo olhando para os ponteiros e eu tive a certeza que eles se movimentavam, devagar, mas se movimentavam, mas só eu sabia perfeitamente o que ele queria insinuar.
“Então? Vamos almoçar aonde?” Perguntei. Saindo do transe, respondeu. “Não sei. Você escolhe. Conhece esse centro tão bem quanto eu.”
Levei-o a um restaurante que ficava nos altos de uma loja na Marechal Deodoro.
Sentados de frente um para o outro – com os nossos pratos feitos – ele me perguntou:
“E ai? O que andas escrevendo?”
“Nada. Só repondo algumas leituras. Sem inspiração, sabe. Nessa época de ano me falta inspiração.”
“Sei como é que é. Também sofro desse mal nessa época de ano.”
“Joyce também sofria, e Thomas Man também. Eles não conseguiam escrever no natal.”
“Sério? Como sabe disso?”
“Li suas biografias.”
“Então não somos os únicos...”
“Não, não somos...”
“Mas você tá bem. Está mais magro. Rejuvenesceu. Tem até peitinhos...assumiu mesmo?” Sorri levando o primeiro pedaço de frango á boca. Eu havia escolhido frango e ele carne.
“Sim. Aflorou...”
“Deixa aflorar... é lindo... você está mais lindo e sensível...” Olhei para sua calvície e ela estava mais acentuada e me sorria calma. Foi a vez dele mastigar. Olhei os comensais em volta e eles mastigavam com uma certa tristeza. Só nos dois parecíamos ter apetite. Tínhamos apetite de alimento e de vida.
“Mas... me diz uma coisa...”
“Sim”
“Você, assim, não sente uma certa falta do sexo feminino?”
“Pulei essa etapa fisiológica da vida. As mulheres perderam seu encanto. Tornaram-se assistencialistas demais... Estou bem assim.”
“As mulheres são rolos compressores em cima da gente.”
“Mas você tá bem também. Parou de fumar mel?”
“Tenho feito alguns progressos. Ontem por exemplo bateu a porra da fissura e eu saí pra comprar mel. Andei o Santo Antônio todinho, mas acabei parando numa mercearia e gastei a grana com barras de chocolates. Voltei pra casa, meu pai tava no sofá da sala assistindo televisão, minha mãe na outra ponta, uma cara de tempo que não os via assim, um perto do outro. Ofereci os chocolates e sentei ali com eles e ficamos assistindo os três televisão, em silencio... uma cena estranha, digna de um conto insólito.”
“Está avançando mesmo. Fico feliz.”
“Não sei, a qualquer hora sinto que vou desabar...”
“Desaba não. Ainda temos a nossa literatura...”

Aí fez um pouco de silencio. Dava para ouvir os outros mastigando suas tristezas.

“Depois do almoço, mais tarde, quero que me leve ao Rendez-vous. “
“Ao puteiro, Marcos. Levo sim.”
“Estou sem mulher há meses. Gala retida é um veneno.”
“Boa, posso anotar?”
“Não é original. Li numa legenda de um filme do Bunuel.”
“Os amantes?”
“Acho que foi Belle De jour.”
“Porra! Catherine Deneuve?”
“Linda e melancólica. Quando as mulheres ainda não eram assistencialistas...”
“Pode crer...”
Terminamos o nosso almoço. Andamos a esmo pelo centro, e só depois que eu o levei ao puteiro da Mauá. Eram duas daquela tarde cinzenta.

sábado, 9 de janeiro de 2010

UM CONTO DE NATAL


noite fria, virada de natal, numa pior, carente mesmo, pra quê mentir? Onze e pouco da noite, os disparos de natal, sabe aqueles fogos que formam coroas de luz no céu e nos fazem sentir pequeninos de alma?
aluga-se um corpo, vende-se, doa-se, também um coração, um cérebro, uma alma, tudo que há de doce, largo e generoso em mim, trago devagarinho no balcão do bar a solidão enevoante do meu cigarro, do outro lado da densa névoa, a figura deliquente de um anjo que me sorri, uma toca vermelha sobre a cabeça, olhinhos graúdos e brilhantes, um par de brincos em cada orelha, tão só e tão lindo, esses tipos marginais que escapam furtivamente das páginas de Caio Fernando Abreu, fico então imaginando ele enroscadinho em meus braços, tão quentinho, como o SENHOR na manjedoura, meu pequeno amante,

ai de mim que me esfaqueio a todo instante,
II

vou sentar a sua mesa, não pergunto de pronto o seu nome que é pra não borrar a noite com meu batom de amante, mais tarde vai se chamar Antônio, conforme me jurou virando-me com violencia de costas pra parede:
“mas assim, em pé, querido?”
“não gostas?”
um gesto evasivo na direção do colchonete sobre o chão frio de madeira, me atira de bruços sobre a cama, agora seu peso leve de anjo, sua respiração ofegante sobre minha nuca, me morde todo o corpo, o safadinho, “calma apressado, antes era tão carinhoso, agora tão afoito que me dá até medo”, “é que o dia...” “que tem o dia?” “Já vem e eu tenho que ir trabalhar”, eu que não sou bobo nem nada, sei que não se trabalha no natal, mas me calo como se calam as rosas, vai se agasalhando mais e mais dentro de mim, estocadas que me levam ao céu, pra juntinho de Deus.
beija-me a entradinha antes de espetalar-me a fenda negra que se abre como um trevo de cinco pontas.

agora eu era dele e ele não era meu...
marcio santana
Manaus 7 de janeiro de 20010

A ESTRADA DE WHITMAN

Assumi minha condição gay, o que aparentemente não é nada fácil. Ainda sou alvo de chacotas, comentariozinhos levianos, criticas, brincadeirinhas, risinhos, enfim, a porra do preconceito. Outro dia, quando saía de casa para um eventual encontro com um amigo, ouvi sem querer uma vizinha comentar: “este não tem vergonha na cara, esperou a mãe morrer para virar veado...” Juro que pensei em voltar para dizer-lhe umas coisinhas, mas acabei deixando para lá, considerando a educação que recebi diretamente de minha mãe para lidar em situações como esta . Engoli seco. Solucei a tarde inteira por dentro enquanto apreciava o esvanecer do sol no cais do porto enquanto aguardava a chegada desse meu amigo, e tudo porque sou deveras tolerante com os outros e convenço-me a cada dia que no fundo sou humano, demasiadamente humano, mas sabe, como dizia meu amigo Farrapo, eu cago e ando pra essa gente. A liberdade e a felicidade que experimento agora me é tão esplendorosa e fascinante que chega a compensar todos os olhares sarcásticos e condenatórios a que sou alvo agora cotidianamente. Nunca pensei em estar aqui, sentado frente a este micro, escrevendo sobre essas coisas nada triviais da vida. Mas é que me senti obrigado. Um formigamento. Um desabafo mesmo, sabe. Valho-me da coragem e da ternura que sei que ainda há em mim para finalmente “Get out of the closet”, e encarar esse mundo de frente. Não me sinto sozinho. ÁS vezes quando me sinto amargamente só, pego As Folhas de Relva de Whitman e folheio-as para me confortar a alma. Li certa vez uma estrofe que dizia assim:
(..) A pé, e com o coração iluminado, adentro a estrada aberta, saudável, livre, o mundo adiante de mim, conduzindo-me para aonde quer que eu escolha...
É de um poema chamado “A Estrada Aberta”. Um dos poemas mais lindos que acho de Whitman. Whitman era gay. Celebrou em versos e prosas a liberdade e a ternura de ser livre. Por que na vida nada se impõe. O que precisamos, é vencermos a maldita idéia cultural profundamente arraigada dentro de nós de que ser essencialmente “homem ou “mulher” é uma condição herdada pela natureza e que, portanto, a gente tem que ser do jeito que a sociedade espera de nós.
Com o meu coração aberto, livre das amarras do preconceito, vejo uma estrada nova se abrindo. A estrada de Whtiman. Ou a minha estrada mesmo...
Manaus, sábado 09.12.2010

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O LEQUE

Abro-me como um LEQUE colorido
ventilando na tez desnuda do leitor
a brisa doce da vida.
Sou este fino sopro traduzido em palavras
Alçando vôos nas asas da irrealidade.
Tenho ainda tanto a dizer
Tenho ainda tanto a sentir
Minha língua, átomo do meu sangue
EU agora, com trinta e poucos anos
Com saúde perfeita, nascido deste solo
Deste ar, deste ventre morno,
Celebro contigo o canto de mim mesmo
Grávido de sonhos, pleno de vida, sólida matéria
Quando leres estas linhas,
Eu que era invisível
Visível me terei tornado
Sob as vestes finas deste LEQUE...

Manaus, sexta feira 09.12.2010